Localizada em Torres Vedras, a empresa Moinhos da Capucha—Produtos Tradicionais vai buscar a sua inspiração diária tanto à força da paisagem circundante quanto às tradições transmitidas por gentes humildes que as perpetuaram. É a partir destas tradições que a proprietária e mestre doceira Ana Duarte, com uma ternura imensa e aquele brilho no olhar tão característico de quem deposita todo o seu amor em tudo o que faz, cria, confeciona e reinventa a sua própria seleção de produtos de assinatura.
Quem visita o seu espaço, inaugurado em 15 de novembro de 2018, surpreende-se e enternece-se com paixão e dedicação que a Ana nele depositou, assim como nos produtos que nos apresenta, cada um deles com uma história e histórias para se ir contando à medida que os vamos degustando.
Como surge o projeto Moinhos da Capucha?
Surge da interrogação que um dia coloquei a mim mesma sobre o que seria natural e fácil para mim fazer. E a resposta dividiu-se porque gosto de tudo o que tenha a ver com comida e igualmente de escrever. A isto juntou-se o facto de viver numa zona que é fonte de inspiração para ambos. A marca Moinhos da Capucha—Produtos Tradicionais aparece numa fase da minha vida em que, depois do académico, os filhos estão já no seu caminho profissional e eu opto por deixar o ensino. Cinquenta anos, uma idade boa para dar início a um novo desafio pessoal. Assim, passo a passo, fui refletindo, partilhando, criando, retrocedendo também, descobrindo que a vontade apenas não chega, mas dá força para continuar. Este é um projeto que tem coração na tradição e nos ensinamentos do passado, a razão no presente e o olhar no futuro. É também um projeto com muito do que somos como família e em que todos vão ajudando de acordo com o que fazem melhor, nem que seja o teste da prova…
Quando e como descobriu o seu gosto pela culinária?
As minhas memórias mais marcantes transportam cheiros e paladares, sempre em contexto familiar. Dos avós paternos, o cheiro do pão acabado de fazer era um despertador a que não se resistia. Padeiros e agricultores, em casa todos – nove filhos – eram hábeis na arte do pão e daquilo que se poderia pôr no forno depois dele cozido: peixe, frango, bacalhau, bolos de ferradura, maçãs, batatas, cebolas… tudo tinha lugar naquele forno imenso! O cheiro que dali vinha era de tal forma estimulante que não me lembro de alguma vez ter sentido falta de apetite… noutras alturas, os cheiros eram acres, estranhos, pouco agradáveis para mim. Cheiro de vindimas, de curtimentos de engaços, de fermentação de mostos, de mechas de enxofre e uma adega de depósitos e tonéis imensos onde os homens entravam de lado, em porta minúscula e de lá saíam zonzos, encharcados e malcheirosos.
Do lado materno, outras experiências e ensinamentos; a matança do porco era festa rija! Acho até que o bicho adivinhava que algo iria acontecer, tantos eram os preparativos. Sempre os cheiros, os sabores, as pessoas, as habilidades de cada um e a partilha do que se fez porque só assim fazia sentido. Nas brincadeiras de criança os aniversários das bonecas eram uma constante e os bolos um dia deixaram de ser de flores e folhas e começaram a ser a sério. Um resto de massa de bolo de água, um clássico na altura, dentro de uma mini-frigideira e levado ao forno; e maravilha, o bolo de anos da minha boneca foi um sucesso entre as minhas amigas. Nenhuma jamais havia conseguido convencer a mãe a partilhar um pouco de massa de bolo para a brincadeira. Assim, passo a passo, experiências, curiosidades, teimosias e eu ia descobrindo e aprendendo. Os meus mestres eram todas as pessoas que à minha volta iam fazendo comida, bolos, doces. Nos livros, outra paixão que trago desde que aprendi a ler, fui consolidando o que trazia e aprendendo o que por aí se fazia noutras cozinhas. Com a família e amigos este caminho adquire todo o sentido, mas também pelo compromisso de os surpreender.
O gosto do presente reside nos sabores do passado é o lema que vos guia e vos parece levar sempre mais além. Quais os sabores que melhor definem a Moinhos da Capucha?
Aqueles que não se quer perder e que na memória afetiva nos ligam a pessoas, a locais, a acontecimentos, a épocas. São sabores que se identificam pela sua autenticidade, que se justificam pela forma artesanal como são feitos e que se valorizam na riqueza de produtos naturais e de produção local que fazemos questão de adquirir. Sabores que também se adaptam à época e aos gostos pessoais dos nossos clientes, que sabem encontrar nos Moinhos da Capucha o gosto artesanal da doçaria familiar, mesmo que as suas opções alimentares tenham algumas restrições. Bolo de aniversário vegan? Claro! São, enfim, os sabores que caracterizam a região de Torres Vedras e as suas tradições gastronómicas.
De toda a variedade de produtos que apresenta, quais os que têm uma maior aceitação e procura por parte dos clientes?
Acredito que o ter desenvolvido produtos associados a épocas e factos locais tem contribuído para a sua divulgação e venda. O “Licor do Caraças—O mata-bicho da Matrafona” está associado ao Carnaval; a Uvada, às Festas da Cidade; o bolo de chocolate, às Linhas de Torres Vedras e as Trincas, crocantes e de sabor bem mediterrâneo, são excelentes para acompanhar a degustação de um bom vinho aqui da Região de Lisboa. Todos estes, como outros, fazem já parte da nossa imagem. Ser original ao criar produtos foi sempre o meu objetivo ainda que fundamentados na riqueza da tradição gastronómica local. Acredito ser esta uma das formas de alcançar um lugar no mercado e também, de certa forma, de contornar a concorrência.
As Linhas de Torres assumem um papel importante para o território onde estão inseridas, pelo que decidiram transpô-las para os vossos produtos. Como surgiu o gosto por este tema e quais os produtos que têm associados às Linhas?
Quando comecei a idealizar o conceito que gostaria de imprimir aos Moinhos da Capucha decidi que um dos temas de base teria de ser a história local e aí as Linhas de Torres são, sem dúvida, uma excelente fonte de inspiração. A História é uma das minhas disciplinas académicas de eleição, contém além do mais e em si a vida das pessoas, o seu quotidiano, as suas histórias, assim como a capacidade de nos colocar noutro tempo e realidades. Abre horizontes ao fazer-nos sair de nós. E eu gosto também muito de histórias. O Bolo de Chocolate das Linhas de Torres Vedras traz com ele uma estória de amor: o amor de um soldado francês, ferido em campo de batalha, acolhido em segredo por uma jovem, criada em casa de senhores apessoados. Aqui ela aprendera a fazer um bolo de chocolate que acabaria por contribuir para a recuperação física do “seu” protegido. Bolo que mais tarde chegou até Napoleão, levado pelo seu fiel soldado já recuperado e que, por amor também, Napoleão ofereceu à sua amada Josefina. A receita deste bolo? É mesmo um segredo bem guardado e a história continua… A Tarte do Desassossego e a vida das gentes em tempos difíceis… outra história que poderia ter acontecido. A política “de terra queimada” imposta pelo General Wellington à população do centro de Portugal, que deixou ainda mais pobres os que pouco possuíam e que, de trouxa na mão, iam por aí até sabe Deus onde… Uma mãe de filhos, seus e de outros, que haviam perdido a sua na guerra, vê-se na missão de preparar a trouxa para a partida. Não encontra grande coisa, mas sabe que a fome é realidade tão certa como o desconhecimento do que lhes estava destinado. Fazem-se ao caminho e a única constante é o desassossego: Inverno e chuva intensa, pouca roupa e calçado, muita gente e ladroagem, soldados que não acabam, crianças que se perdem no meio de tantos. Um desassossego, aqueles muitos dias que levam até chegar ao Forte de S. Vicente, o refúgio desconhecido. Um belo dia, ao amanhecer, uma mãe de filhos, seus e de outros é motivo para festa. Da trouxa saem uns chícharos ali guardados, pois sabe-se lá o que poderia vir ainda… na verdade, veio a festa e fez-se a tarte do desassossego, porque não há mal que sempre dure nem… doce que não se acabe. Toscas de Galinha poderiam ter sido o repasto de fim de dia, um dia tranquilo para todos, menos para o galinheiro… o dia em que o General partilhava o rancho com os seus “galos de briga”, nome que dava aos soldados portugueses. Rancho melhorado, de certeza! Tarte de galinha, tosca que o tempo era pouco, a habilidade e o requinte não iam muito além, mas o sabor e os aromas, ah, sim! Estavam todos lá.
Olhando para a marioneta de Napoleão Bonaparte que decora o seu espaço e que certamente serviu de inspiração para algum dos seus produtos, questiono-me sobre se a Ana concorda com a seguinte frase do Imperador: “Um exército avança de acordo com o seu estômago”.
Uma frase que vinda de Napoleão, um homem com uma personalidade complexa, terá de certeza muito que se lhe diga. Aquela mão dentro da casaca é emblemática e até se diz que sofria de azia constante – será essa a razão da sua expressão? A verdade é que na derrota do seu exército foi fulcral o fim da possibilidade de abastecimento obtido por meio de pilhagens. Alimentarmo-nos é tão sério, importante e vital que se conclui daí que se nos alimentarmos de forma correta e equilibrada seremos mais proactivos, eficientes, saudáveis e felizes. Acredito, promovo e faço!
Para além dos produtos com a temática das Linhas de Torres, que outras iguarias podemos encontrar que retratem igualmente bem a região?
Como já disse, esta região é fértil e inspiradora, pelo que muitas vezes o difícil é manter o foco e não ir muito além, porque se corre o risco de não se conseguir chegar a tudo. A uvada, os doces de fruta com vinho em casta monovarietal, como Pera Rocha com Touriga Nacional, Maçã Reineta com Arinto e Frutos Silvestres com Cabernet Sauvignon, o licor feito de vinho da região e que foi dedicado ao Carnaval de Torres Vedras com o nome de Licor do Caraças—Mata-bicho da Matrafona e outra variedade dedicada às Linhas de Torres e seus protagonistas numa associação ao "Vinho dos Mortos". A linha de biscoitos criados e dedicados a locais emblemáticos da cidade de Torres Vedras e praia de Santa Cruz, as Morenas de Uvada, pequenas tartes feitas de uvada, queijo e noz que nos remetem para os sabores locais, ou as Bicas, que são o casamento perfeito entre a cidade, com os seus pastéis de feijão, e campo, com a sua produção vinícola, pois à receita do pastel de feijão tradicional adicionei o licor feito de vinho. Tudo o que faço tem que ter sentido para mim e para a região onde vivo, bem como a possibilidade de acrescentar algo de bom ao que já é muito bom.
As receitas únicas e a utilização dos melhores ingredientes regionais definem a Moinhos da Capucha; contudo, também se dedicam ao catering e serviços de eventos. Pode falar-nos deste vosso serviço Catering-Boutique?
Sim, receitas únicas que algumas vezes partem de outras já existentes, mas também que de raiz vou experimentando, testando. O Bolo de Vinho é um exemplo: surge das “sopas de cavalo cansado” que, com mais uns ingredientes, lá acabou por ficar um extraordinário bolo de sabores rurais. O serviço de Catering-Boutique, que vou fazendo sempre que mo solicitam, é sem dúvida algo que me dá uma satisfação imensa, também pela possibilidade de adaptar o que faço ao evento em si. Tudo, mais uma vez, terá que fazer sentido. Recordo um dia em que estava com um coffee break empresarial, apenas homens, era dia de S. Valentim e fiz de propósito uns biscoitos em forma de coração que espalhei aleatoriamente pelo centro da mesa, como que fazendo parte da decoração da mesma. Alguém mais atento denunciou o facto e, foi sem dúvida, a partir dali, um desbloqueador de conversa. É assim que gosto de trabalhar, de forma dedicada e personalizada, porque a elegância que a simplicidade aporta nos entra primeiro pelos olhos. Comer é sempre um ato social e relacional que se pretende que seja simples, apaladado, autêntico. O meu contributo vai igualmente no sentido de revelar, pela apresentação da mesa e pela comida que nela é colocada, o sentimento ou motivo que se quer transmitir. Festas familiares, coffee breaks empresariais ou institucionais de pequena/média dimensão, são momentos que cada vez mais vão surgindo e que com muito agrado e satisfação do cliente vamos desempenhando.
Existem novidades para breve?
Neste momento é fundamental a dedicação ao que já está estabelecido. Em novembro último concluímos as obras que nos permitiram ter uma cozinha mais eficiente e abrir a loja ao público. Por mais ímpeto criador que possa sentir, a verdade que me imponho é a de que este espaço tem que ser rentável e autossuficiente dentro de um tempo razoável. Explorar, dinamizar e fazer outras parcerias ligadas ao turismo poderá, acredito, ser um caminho a trilhar e para o qual considero ter resposta pelos produtos que a Moinhos da Capucha apresentam. Quero muito contribuir para o desenvolvimento local, mas também para a sustentabilidade do meu negócio e projeto. As parcerias efetivas e focadas no interesse mútuo e consciente de que o melhor para mim é o melhor para o outro são, assim, muito bem-vindas.
Onde podem ser encontrados os produtos Moinhos da Capucha?
Poderão encontrar-nos enquanto espaço próprio de fabrico e venda em Torres Vedras, na Rua Zeca Afonso, N.º 9—Bairro Vila Morena. De outra forma estamos presentes na Loja Torres, da Área de Turismo do Município de Torres Vedras, e noutras lojas ligadas à Enologia.
Em poucas palavras, como define a Moinhos da Capucha?
Apresentar o logótipo da Moinhos da Capucha-Produtos Tradicionaiso—o gosto do presente reside nos sabores do passado é dar a certeza da sua essência, porque o resto são meros acréscimos.
Gostaria de deixar uma mensagem aos nossos leitores?
Muitas vezes dou por mim a pensar em tudo o que passaram, todos, sem exceção, os que viveram no tempo das Invasões Francesas e sei que o meu entendimento será pouco para abarcar essa tão grande realidade, mas aquilo que retenho é a capacidade de resistência à adversidade e ao sofrimento; a força mental e física necessária para levar a bom termo o objetivo traçado; o dinamismo criador gerado na maior das dificuldades e que tantas vezes levava à superação pessoal e eliminação de barreiras. Este é um testemunho que nos deveria impelir positivamente na vida e inspirar enquanto seres humanos. Um testemunho de guerra, sim, mas também uma oportunidade para fazer um hoje melhor.