No sopé da Serra do Socorro, abraçada por bosquetes de árvores seculares, somos surpreendidos e agraciados pela beleza da Quinta da Póvoa, exploração agrícola constituída por duas casas oitocentistas, repleta de História e de histórias por contar…
A centenária quinta foi palco das Invasões Francesas, tendo servido de abrigo estratégico à resistência civil armada, liderada pelos Voluntários Reais durante a Primeira Invasão (1807-1808), e posteriormente transformada em quartel-general de Sir Brent Spencer, 2.º comandante do exército britânico da Península, durante a ocupação e defesa das Linhas de Torres Vedras, em 1810.
A Quinta da Póvoa conserva uma herança histórica referente à época da Guerra Peninsular. Pode desvendar-nos algumas curiosidades e episódios que tenham passado de geração em geração referente a esse período tão marcante da nossa história?
Como em qualquer outra situação de conflito bélico, as marcas deixadas pela Guerra Peninsular atormentaram a família durante muitos e longos anos. Foi já no início do século XX e através do General Teixeira Botelho, historiador militar e autor da História popular da Guerra Peninsular (1915), enquanto vizinho e amigo dos meus bisavós, que a família começou a encarar com outro espírito aquilo que até ali classificava de “más memórias”. Teixeira Botelho levou em visita às Quintas e à Serra do Socorro o historiador militar britânico Sir Charles Oman, quando ele andava a preparar a famosa History of the Peninsular War. Desde então a minha bisavó, que viveu 100 anos, interessou-se pela preservação dos testemunhos para as gerações vindouras.
A maioria das histórias que conhecemos, algumas ainda ouvidas diretamente dos interlocutores principais, tem passado de geração em geração e envolve, para além da família, os fiéis empregados que então viviam e trabalhavam nas propriedades. A sua preservação é uma questão de respeito pela história de quem não teve alternativa de escolha para defender a vida e propriedades das atrocidades dos invasores.
Neste contexto, deixo aqui alguns relatos curiosos.
Na encosta da Serra do Socorro, pertencente à Quinta do Vale do Corvo, existe uma zona conhecida como Terra do Alferes, em homenagem a um resistente local que se notabilizou na luta contra os franceses, apoiado logisticamente pelas Quintas da Póvoa e Vale do Corvo.
Aqui fica um episódio narrado pela minha bisavó Maria Sophia Barreiros Cardozo de Araújo de Barros e Vasconcellos:
O Alferes (1), João de Miranda, era sobrinho do meu tetravô Francisco Camarate e teve um papel preponderante na organização da resistência local contra os franceses. Ele usava uma espada improvisada que tinha tanto de estranho como de curioso, ou seja, uma guarda duma arma do século XVI, conservada há várias gerações na família e enxertada numa lâmina de infantaria do século XIX. Assim que se tornou conhecido pelos seus feitos, despertou a atenção dos franceses, que o perseguiam incansavelmente, e acabou por sucumbir às hostes de Junot, vítima duma emboscada na dita encosta da Serra do Socorro. Para espanto da família e dos amigos o seu corpo nunca apareceu, bem como a sua bizarra espada, o que levou a supor durante quase 100 anos que o local associado à cilada que originou a sua morte fosse a estrada que segue de Casal Barbas para S. Sebastião/Enxara, entre a Quinta da Póvoa e Vale do Corvo. Em memória ao trágico incidente, foi pela família colocada no local uma cruz de pedra. Contudo, em 1904, o meu bisavô, Eduardo Camarate de Barros e Vasconcellos, andava a supervisionar os trabalhos agrícolas de remoção de pedras em plena Serra do Socorro quando os jornaleiros ao seu encargo depararam com uma estranha espada. Graças às memórias locais, Eduardo logo se apercebeu de que se tratava efetivamente da desaparecida espada do “Alferes” e, comovido, guardou-a desde então religiosamente, em memória do herói que ali padecera.
Apesar de a cruz de pedra ter desaparecido durante o alargamento da antiga estrada real de Torres Vedras para Lisboa, não voltando a ser recolocada, provavelmente devido à descoberta da espada noutro local, ainda hoje ambos os sítios são designados como a Terra do Alferes e a Cruz.
(1) “Alferes” na época medieval era o porta-estandarte ou bandeira.
A propósito do relevante interesse e excelente qualidade dos vinhos de Lisboa:
Robert Bremner, pioneiro do turismo histórico nas Linhas de Torres Vedras, descobriu nas memórias de August Shaumann, o comissário geral de abastecimentos de mantimentos do exército de Wellington, uma referência bastante elogiosa ao meu tetravô, que comercializava os vinhos produzidos pela família nas Quintas das Barras, Porto das Barras e Póvoa. Escreveu Shaumann no seu diário: Fui ter com o Senhor Cammarata (Francisco Rodrigues Camarate) ao Gradil, o negociante de vinhos que abastecia o regimento e que tinha o vinho mais maravilhoso que havia, o vinho branco, em especial, brilhava como ouro quando saía da torneira da sua cuba de barro (In On the road with Wellington: The Diary of a war comissary). Esta nota ganha ainda maior relevância já que são raríssimas as referências a civis portugueses por parte dos militares britânicos.
Voluntários Reais de Torres Vedras e a resistência armada:
Conforme consta das memórias de Frei Taveira, um franciscano que havia abandonado o convento de Mafra quando da chegada do General Junot na primeira invasão, o meu tetravô Herculano de Barros e Vasconcellos, proprietário da Quinta das Barras, era ajudante do Batalhão de Voluntários Reais de Torres Vedras. Enquanto amigo chegado de Frei Pedro Taveira, era cúmplice deste na organização e preparação da resistência civil armada contra as hostes do General Loison, “O temível maneta”, que, instalado no convento de Mafra, cometeu as maiores barbaridades pela região durante a primeira invasão francesa.
O núcleo resistente integrava essencialmente oficiais do exército português que se tinham recusado a incorporar a força militar enviada por Junot para França para reforço de Napoleão, lavradores abastados e populares munidos de caricatas alcunhas. Apoiava-se em termos logísticos nas quintas das redondezas. Atuavam prioritariamente junto das principais vias de comunicação para Lisboa, tais como as que circundam a Serra do Socorro.
A Quinta tem-se mantido desde sempre na posse da sua família, a qual tem conservado toda a herança histórica há mais de 200 anos. Que objeto deixado pelo general Sir Brent Spencer considera mais curioso ou peculiar?
Há uma caixa de guerra britânica (pequeno tambor) que me recorda o meu avô Manuel de Araújo de Barros e Vasconcellos e as histórias que me contava em torno dela. Para além da parte da casa que se mantém inalterada desde o período e onde é possível imaginar como então vivia o estado-maior britânico, tenho especial atração por alguns objetos civis muito mais adequados a um confortável lazer do que à guerra, facto que me faz crer que os oficiais superiores britânicos vieram para as Linhas fazer turismo. Na minha opinião, as memórias e curiosidades não bélicas, alheias à típica contabilidade de mortos e feridos da generalidade dos campos de batalha da Europa, é o que torna as Linhas de Torres Vedras um destino turístico ímpar totalmente inserido em pleno espaço rural.
Sir Arthur Wellesley, mais conhecido por Duque de Wellington, tinha o seu posto de comando bem próximo da Quinta da Póvoa. Volvidos mais de 200 anos, o Miguel decidiu abraçar um projeto inovador e lançar um produto concebido com um dos produtos endógenos produzidos na sua Quinta, a pera Rocha, prestando ao mesmo tempo uma homenagem a Wellington. Quer falar-nos melhor acerca deste produto e de como surgiu o projeto?
O projeto Old Nosey nasceu em Julho de 2018 como marca registada europeia, com o objectivo de produzir uma gama de excelência de bebidas espirituosas e vinho IGP Lisboa. O produto ex-libris é o Old Nosey Perry Spirit (Aguardente de perada de pera Rocha), uma bebida premium resultante de vários anos de experiências e investigação.
O Old Nosey foi lançado oficialmente a 24 de Novembro de 2018 na cidade de Torres Vedras, no programa Aqui Portugal, da RTP1.
A Quinta da Póvoa conserva os pomares tradicionais de sequeiro com idades compreendidas entre os 60 e os 159 anos, instalados na encosta basáltica do Monte Socorro, que serviu de principal centro de observação e comunicação do Duque de Wellington durante a defesa das Linhas de Torres Vedras.
Os pomares são compostos, na sua maioria, de pera Rocha mas também de outras variedades autóctones que servem de polinizadoras, tais como a Carapinheira Parda, a Pérola e a Lambe-lhe-os-dedos.
Apesar de a fruta produzida ser de excelente qualidade organolética, não produz em quantidade e calibre conforme a moderna normalização exige, tornando o sistema obsoleto. Reconhecido todo o potencial diferenciador, era necessário encontrar um canal alternativo de escoamento onde a verdadeira qualidade fosse valorizada em detrimento da quantidade. A destilação foi a opção que nos despertou maior interesse. Enquanto destilado único, produzido num antigo quartel-general das Linhas de Torres Vedras que mantém a atividade agrícola tal como há 210 anos e em sintonia com história da família e o Monte Socorro, o caminho óbvio foi a articulação com a Guerra Peninsular, inspirando-nos em tudo aquilo que nos rodeava.
O Old Nosey não só pretende homenagear o General Wellington enquanto herói da região de Torres Vedras, mas também o povo que ajudou a construir e defender as Linhas de Torres Vedras. O sucesso do sistema defensivo ditou o início do declínio do império napoleónico e a glória do Duque de Wellington. Esse enorme esforço local foi simbolizado na embalagem do Old Nosey através do saco de serapilheira envolvente, uma vez que a população rural se agasalhava, durante as suas árduas tarefas do campo, com este tipo de têxtil.
Diz-se que a aguardente, tal como a conhecemos hoje, remonta à época da Guerra Peninsular e que, após o término desta, muitos dos franceses que permaneceram aqui na região começaram a destilar o vinho, tal como acontecia em França. Tendo em conta este facto histórico e a ligação da Quinta da Póvoa a este período, o mesmo terá servido de inspiração para a criação desta aguardente tão peculiar?
A técnica de produção do destilado de pera Old Nosey é nitidamente da escola francesa mas adaptada à principal variedade de pera nacional. Contudo, eram os britânicos que estimulavam com doses suplementares de brandy os soldados que iam combater.
Qual a origem do nome “Old Nosey” e qual o seu significado e ligação ao Duque de Wellington?
MVG - O nome “Old Nosey” leva-nos ao período da Guerra Peninsular e era a alcunha pela qual o General Wellington, figura de destaque da história das linhas de Torres Vedras, era conhecido junto dos seus soldados. O general Wellington assume o comando do exército da Península após a morte do general Sir John Moore, na Batalha da Corunha, em 1809. A alcunha surge durante a construção das Linhas de Torres Vedras e acompanha-o até à vitória final na batalha de Waterloo, onde foi saudado aos gritos de “Hurrah for Old Nosey”!
O Logótipo simboliza o nariz avantajado do primeiro Duque de Wellington em forma duma meia pera sombreada, que evoca não só o aroma intenso a fruta madura do destilado premium, mas também um “lado B” mais romanceado da vivência nas Linhas de Torres Vedras, ironicamente relatado por Lord Byron e Sir Arthur Conan Doyle (Aventuras do brigadeiro Gerard), por entre inúmeras curiosidades e intenso humor.
O registo do Old Nosey como marca verbal europeia superou todas as nossas expetativas iniciais, pois a alcunha do primeiro Duque de Wellington era relativamente bem conhecida por entre os anglo-saxónicos, pelo que havia grandes possibilidades de ser já propriedade industrial de alguém. Foi sem dúvida alguma um excelente trabalho do Eng.º Luís Caixinhas, da Inventa Internacional. Em paralelo, conseguimos também o registo da marca associada The Spirit of The Lines.
Em poucas palavras, como descreveria a aguardente Old Nosey?
Trata-se duma bebida espirituosa, frutada e suave, de aroma intenso a pera madura. A destilação é feita em alambiques tradicionais de cobre na Quinta da Póvoa, antigo quartel general das Linhas de Torres Vedras, a partir de peras Rocha do Oeste, produzidas em pomares tradicionais de sequeiro com mais de 60 anos. É um produto premium totalmente nacional, sem qualquer incorporação de álcool ou outros ingredientes nacionais ou estrangeiros para além da pera Rocha do Oeste da Quinta da Póvoa. Segue a linha do destilados de fruta de topo do centro e norte da Europa, tais como a Williamine, a Calvados ou o Kirsh.
O Old Nosey, produto premium totalmente nacional, é detentor de certificados de garantia de qualidade. Quais?
É detentor de quatro certificados de garantia de qualidade: Produção Integrada, Pera Rocha do Oeste, PEFC (gestão florestal sustentável das espécies florestais autóctones compostas por carvalhos, sobreiros, medronheiros etc., que envolvem os pomares) e Natural.pt (enquanto produzido de forma sustentável na paisagem protegida da Serra do Socorro e Archeira).
A produção é totalmente sustentável e responsável do ponto de vista ambiental. O tipo de embalagem utilizado é perfeitamente biodegradável e compõe-se exclusivamente de componentes como vidro, lacre natural de cera de abelha, rolha de cortiça e saco envolvente em serapilheira.
Face a todas as suas características, o Old Nosey venceu o prémio produção nacional Intermarché 2019 na categoria de produtos nacionais transformados.
Para além de poder ser consumido puro como digestivo, de que outras formas podemos degustar e/ou utilizar Old Nosey?
Pode ser consumido:
- Como aromatizante de café;
- Em cocktail, com água tónica, soda ou outros ingredientes, tal como foi apresentado no Lisbon Bar Show pelo conceituado bartender Torreense Miguel Gomes.
- Conforme sugerido pelo Vice-Presidente da Academia Internacional de Gastronomia, o Eng.º Bento dos Santos, o Old Nosey adequa-se a preparação de marinadas de caça ou de carne de porco, acompanhadas com puré de pera, tempero de terrinas e patês, lombo Wellington.
- Sobremesas elaboradas: flambear crepes e gelados cobertos com claras batidas com açúcar. Preparação de: “Omelete Norvégienne”, tarte “Tatin de Pera”, “Kouglof”, “Babá au Poire”.
Para além do mercado nacional, há a intenção de divulgar o produto internacionalmente?
Sim, já fizemos divulgação numa feira em Praga com a Frutugal e em Espanha e em Londres através das embaixadas, da AICEP e da Câmara do Comércio. Há sem dúvida alguma um longo caminho a percorrer por entre os países envolvidos nas guerras napoleónicas.
Onde é possível adquirir o Old Nosey?
Em Torres Vedras, na simpática Loja Torres Vedras da rua 9 de Abril; nos concelhos limítrofes, na garrafeira dos Intermarché; em Lisboa, na Garrafeira Agrovinhos, em Alcântara.