A Lígia é, desde o início de 2020, a nova secretária-geral da Associação de Turismo Militar Português (ATMPT). O que a levou a aceitar este desafio?
Quando recebi o convite para assumir o cargo de Secretária-geral, estava na Associação há cerca de um ano. O desafio era enorme e tinha a responsabilidade acrescida de assumir as funções da pessoa mais associada ao Turismo Militar, que esteve desde a génese do conceito à operacionalização, o João Pinto Coelho, atual Vice-presidente da ATMPT. O João foi e continua a ser, sem sombra de dúvida, um mentor e a pessoa que mais me tem orientado neste percurso, e a quem eu agradeço imenso. Na verdade, acreditei e acredito que a ATMPT tem uma grande potencialidade enquanto entidade de referência e que pode liderar projetos com impacto no âmbito do Turismo Militar. Acredito que este segmento pode marcar pela diferença, sobretudo em locais com baixa densidade populacional, seja na captação de visitantes, seja na projeção de atividades e eventos diferenciadores que não sejam apenas “mais um” no meio de tantos. O Turismo Militar pode ser algo novo, diferente, que chega às pessoas, que desperta interesse, que promove emoções… e foi isso mesmo que aconteceu comigo. Espero contribuir de alguma forma para o desenvolvimento desta área e que o Turismo Militar se torne um segmento de relevo no turismo em Portugal.
O Turismo Militar foi durante, muito tempo, visto como um nicho de mercado que só interessava a especialistas da área militar e, sobretudo, do sexo masculino. Sendo a Lígia uma das poucas mulheres ligadas a este tema, o que acha que está a mudar?
Confesso que não olho para esta situação dessa forma. Atualmente vemos inúmeras mulheres ligadas a este tema, de uma forma ou de outra, até porque ele é transversal ao Património, à Cultura, à História, ao Turismo… e, no fundo, em todas estas áreas encontramos mulheres a “dar cartas”, muitíssimo qualificadas e extremamente competentes.
A sua escolha para o cargo baseou-se na “experiência, competência profissional e qualidade humana”. A partir de quando se começou a interessar pelo Turismo Militar?
O interesse pelo Turismo Militar, em particular pelo conceito e temática, posso dizer que foi recente… e depois surgiu a oportunidade de integrar a equipa da ATMPT. Apesar de ser formada em Conservação e Restauro e de ter feito grande parte do meu percurso profissional nesta área, todo o trabalho no âmbito do Património é suscetível de despertar o meu interesse e, como tal, encarei esta oportunidade como um desafio pessoal e profissional. Tenho a chance de trabalhar numa área diferente, mas bastante aliciante e em expansão, de conhecer pessoas de várias áreas e de diferentes pontos do país, com experiências e projetos incríveis. No interior da Associação tenho o privilégio de trabalhar com uma equipa incrível, de excelentes profissionais, pessoas criativas, dinâmicas e muito companheiras. Somos uma equipa pequena, mas com “amor à camisola”, acreditamos na ATMPT, no trabalho que tem sido desenvolvido e que podemos aprender sempre mais, melhorar e crescer. A aprendizagem faz-se caminhando, ninguém pode achar que já sabe tudo… continuamos sempre com muita coisa para aprender.
Na qualidade de secretária-geral da ATMPT, qual entende ser a atual missão da Associação de Turismo Militar Português?
Neste momento, e considerando o trabalho desenvolvido pela Associação nestes cinco anos de existência, a ATMPT é assumida externamente como uma das entidades de referência desta área e, de certa forma, “exigem-nos” algo mais, um passo em frente. E nós acreditamos que esse passo em frente começa pela estruturação da oferta existente no território nacional. Este vai ser o grande foco da ATMPT no próximo ano.
Poucos meses depois de assumir o cargo de secretária-geral, o país confronta-se com uma pandemia à escala mundial e foi imperativo que vivesse três meses de rigoroso confinamento. Como é que a ATMPT agiu face a esta dificuldade?
Face a toda esta situação, a ATMPT não parou. Aliás, continuámos bastante ativos e decidimos, logo no início de março, dinamizar uma série de entrevistas e eventos online, com transmissão em direto e acesso livre, dirigidas aos profissionais do setor. No total promovemos 12 entrevistas, em dois meses e meio, com um conjunto de convidados que trabalham diretamente com o Turismo Militar, nas suas diferentes vertentes. No pós-estado de emergência organizámos três sessões online dedicadas aos nossos associados e à promoção dos seus territórios. Estas sessões, para além de contribuírem, de certa forma, para a capacitação destes agentes, promoveram sinergias e uma partilha de conhecimento entre estes profissionais. O balanço e o retorno foram bastante positivos: por um lado, mantivemos a proximidade com estas pessoas que se viram obrigadas a parar e, por outro, conseguimos manter ativa a rede de Turismo Militar em Portugal. Para além disso e do trabalho diário de produção e promoção de conteúdos, cimentámos os projetos que estavam em desenvolvimento e fizemos uma série de novos contactos e parcerias estratégicas.
A situação de saúde pública veio trazer outros desafios, nomeadamente na forma de comunicar. Como é que a Lígia vê o papel da ATMPT no presente e num futuro próximo?
Como referi anteriormente, o trabalho diário da ATMPT não foi afetado, porque continuámos a manter os contactos e assumimos novas formas de comunicação, sobretudo através das plataformas digitais. Claro que acreditamos que o contacto direto com os agentes não vai ser totalmente substituído e tem uma base muito importante neste setor. O papel principal da ATMPT será sempre o de ser o elo entre as entidades que trabalham este segmento. Neste momento, e assumindo um papel de destaque no turismo militar, a ATMPT pode atuar em alguns pontos-chave para o desenvolvimento do mesmo, promovendo a “discussão” pública sobre esta temática, contribuindo para a educação e conhecimento do conceito em questão, consciencializando para a importância da salvaguarda e preservação do património histórico-militar, capacitando agentes e estruturando a oferta existente.
A ATMPT tem vindo a destacar-se no desenvolvimento de conteúdos para as redes sociais, na agenda de eventos, reunido e divulgado o que se faz no país em matéria de turismo militar, em ações de promoção nacionais e internacionais e na capacitação dos agentes turísticos, na criação de redes informais de cooperação, entre outros. Que outros projetos e desafios tem para o futuro e como podem contribuir para a tão necessária retoma do turismo?
A ATMPT está a promover junto dos Municípios portugueses a criação de um Roteiro de Turismo Militar, composto por um conjunto de rotas associadas a acontecimentos e períodos da história nacional, que visam promover e divulgar recursos, equipamentos e serviços turísticos e culturais nacionais passíveis de integrar, de forma direta ou complementar, a oferta de Turismo Militar em Portugal. Trata-se de um projeto dinâmico em constante construção e será materializado e atualizado com as entidades que aderirem. Deste modo, a Associação de Turismo Militar Português pretende estimular a oferta e publicitar o território de forma dinâmica e proactiva. A integração numa das Rotas (ou várias), confere aos Municípios um conjunto de serviços direcionados especificamente para a promoção e divulgação do património histórico-militar da sua região. O objetivo é promover e divulgar todos os pontos de interesse e atração do território, sejam eles recursos históricos, culturais ou naturais, passíveis de integrar as rotas existentes. Este projeto vai ao encontro daquela que tem sido a missão da Associação e do trabalho desenvolvido em conjunto com os seus associados e parceiros nos últimos 5 anos, no sentido de colmatar uma lacuna existente e estruturar a oferta, contribuindo para a promoção do território e a salvaguarda do património histórico-militar. Tivemos, ainda, a oportunidade de iniciar ações de promoção e divulgação, de âmbito nacional, em conjunto com entidades públicas e órgãos nacionais de comunicação social, para contribuir na divulgação dos recursos existentes em diferentes regiões e para consequente atração de novos públicos.
Conhece o trabalho desenvolvido pela Rota Histórica das Linhas de Torres (RHLT) na salvaguarda, valorização e divulgação do património das Linhas de Torres e das Invasões Francesas a Portugal?
A Rota Histórica das Linhas de Torres é Associado Honorário da ATMPT e um excelente parceiro no desenvolvimento do Turismo Militar associado à temática das invasões francesas. A RHLT tem feito um trabalho de excelência quer na promoção do território, quer no trabalho conjunto entre diferentes municípios em prol de um objetivo em comum. O mérito é mais do que reconhecido!
Que contributo pode dar a Rota Histórica das Linhas de Torres para a qualificação do turismo militar e para o trabalho que a ATMPT está a desenvolver, nomeadamente ao nível da retoma cultural e turística?
A Rota Histórica das Linhas de Torres tem certamente um papel importante na qualificação do turismo militar, destacando-se por ser um projeto pioneiro e experiente, capaz de atrair visitantes e de agregar um conjunto de variadíssimas experiências integradas em torno da guerra peninsular. Um exemplo a seguir.
Que balanço faz da plataforma de roteiros, desenvolvidos, com base no património militar nacional, pelo Ministério da Defesa Nacional?
Do ponto de vista da ATMPT, todos os contributos são válidos e importantes para o desenvolvimento e para a concertação da imagem comum do Turismo Militar, seja pelo trabalho desenvolvido pelas Autarquias, privados ou pelo Ministério da Defesa Nacional.
Qual o papel que o Ministério da Defesa pode desempenhar enquanto proprietário da maioria das estruturas militares do país?
O papel do Ministério da Defesa é de facto muito importante enquanto detentor de grande parte das estruturas militares nacionais. Mas sabemos que o papel do MDN passa por desenvolver atividade no âmbito das competências que lhe são conferidas pela Lei de Defesa Nacional. Não podemos exigir à entidade máxima que se dedique exclusivamente ao setor do Turismo ou da Cultura. De qualquer forma, pode e deve ter um papel de mediador e facilitador no que diz respeito a projetos em torno da preservação dessas estruturas militares e os últimos anos têm demonstrado que existe por parte do MDN uma maior e crescente preocupação e sensibilidade para trabalhar esta questão.
Sente que os portugueses conhecem e valorizam a sua história cultural e militar?
Penso que esse grupo é, ainda, restrito. Infelizmente. No meio académico, encontramos um número mais alargado de interessados nesta temática e surgem várias publicações nesse sentido. É importante continuarmos a estimular esse sentido de pertença das comunidades, face àquela que é a sua história local, regional e nacional e que faz parte da nossa identidade. Todos temos um papel importante neste sentido.
Qual é a sua opinião sobre a Estratégia traçada até 2027 pelo Turismo de Portugal no que respeita ao turismo militar?
Quanto à Estratégia Turismo 2027, observamos que o turismo militar aparece direta e indiretamente representado na implementação de projetos, assentes nas linhas de atuação do primeiro dos cinco eixos estratégicos – valorizar o território e as comunidades. Esta estratégia, de certa forma expetável, vai ao encontro daquilo que tem sido desenvolvido pelas diversas entidades públicas e privadas ao longo dos últimos anos, incluindo a ATMPT e culmina na estruturação da oferta turística em torno da criação de uma rede de turismo militar. De facto, é este o caminho e é neste sentido que todos trabalhamos.
Portugal tem uma herança patrimonial e militar riquíssima; no entanto não há estruturação de produto para comercialização ou, quando existe, é ainda muito incipiente. O que falta ainda para que os operadores turísticos se interessem por vender itinerários de turismo militar?
Neste momento, acho que não falta assim tanto. Face aos atuais desafios do turismo e da cultura, consequência da situação pandémica, este ano assistimos a um interesse crescente por parte dos privados nesta temática, sobretudo pelos contactos que tivemos na ATMPT. Estamos a lidar com uma área em expansão, capaz de promover fluxos turísticos a regiões do Interior, contrariando a tendência do turismo de massas e da sazonalidade, capaz de agregar experiências diferenciadoras e de atrair novos públicos. Portanto, acredito que já em 2021 surjam novos itinerários no âmbito do turismo militar, dirigidos ao mercado interno, e nos próximos anos uma oferta mais vasta neste sentido.
Quais são os principais desafios que o turismo militar enfrenta para se tornar num produto verdadeiramente atrativo?
Esses desafios estão hoje relacionados com a diversidade e dispersão dos recursos passíveis de integrar a oferta de turismo militar existente ao longo de todo o território nacional. Observamos uma lacuna no que refere à documentação e inventariação destes recursos. Sabemos que eles existem, mas não temos verdadeiramente a noção quantitativa e qualitativa destes recursos. Para não falar da variedade de temáticas associadas à história militar nacional.
De que modo o storytelling pode adicionar valor ao turismo militar? Acha que há uma narrativa para o país ou há uma construção de pequenas narrativas?
No seio da rede do Turismo Militar tem-se debatido a importância das narrativas vezes sem conta. A história militar nacional tem de facto condições para criar experiências turísticas e culturais relevantes, adotando a construção de narrativas como “veículo” agregador de novos públicos, novos produtos, novas experiências e uma série ilimitada de oportunidades de negócio. O turismo militar tem a capacidade de se cruzar, de forma complementar, com outros produtos, outras experiências, nomeadamente com o turismo religioso, o turismo de natureza, o enoturismo ou o turismo ativo. Uma experiência não tem necessariamente de começar e terminar num determinado local, pode fazer parte de uma experiência integrada, através do conjunto das várias narrativas que pode ter a mesma temática em diferentes territórios. Portugal, sendo detentor de um amplo e diversificado património histórico-militar, material e imaterial, tem um potencial enorme no que diz respeito à construção de narrativas. Mas é importante que haja um profundo conhecimento da história e do património português e é nesse sentido que estamos a trabalhar.
Como pode o turismo militar contribuir para a diminuição da sazonalidade turística no país e ao mesmo tempo beneficiar dos grandes fluxos turísticos de Lisboa, Porto e Algarve?
Para combater a sazonalidade e usufruir dos grandes fluxos turísticos é necessário que haja realmente oferta, sobretudo ao nível de produtos e projetos consistentes, inovadores e criativos. O turismo militar, por si só, tem a vantagem de puder ser desfrutado ao longo de todo o ano e em toda a extensão do território nacional.
Que conselhos gostaria de partilhar para o sucesso de um produto turístico histórico, cultural e militar, que atravessa o país de lés a lés? E para as políticas públicas e privadas?
Tendo em conta que o turismo militar em Portugal é, ainda, um conceito relativamente recente e com alguma resistência, o trabalho em rede é uma mais-valia para o sucesso. Ninguém trabalha sozinho. É importante que haja uma consciencialização por parte das entidades públicas e privadas de que, para que o turismo militar seja encarado como um segmento de referência, tem de haver um trabalho conjunto por parte das organizações, beneficiando a partilha de conhecimento e a integração dos diversos players do território, bem como da comunidade local. Só assim é possível estruturar a oferta existente e promover a criação de produto turístico.