Manuel Lacerda é arquiteto na Direção-Geral do Património Cultural, Ponto Focal para o Património Mundial da UNESCO, representante do Ministério da Cultura no Grupo de Trabalho para o Património Mundial, perito do Grupo de Trabalho do Património Cultural da Comissão Europeia, representante de Portugal no Comité Diretor do Acordo Parcial Alargado para os Itinerários Culturais do Conselho da Europa, diretor da Revista Património, foi coordenador nacional das Jornadas Europeias do Património e do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios e é membro do Conselho Consultivo da Rota Histórica das Linhas de Torres.
Conversámos com Manuel Lacerda sobre a relação do património com a cultura, o turismo, a sustentabilidade e a qualidade de vida das comunidades.
Recorreu a uma frase de Antoine de Saint-Exupéry, “Herdámos a Terra dos nossos antepassados, tomámo-la de empréstimo às gerações futuras”, numa edição da Revista Património, para ilustrar como deveria ser pensado o posicionamento humano face aos recursos globais do planeta. Como vê as medidas que estão a ser tomadas para a salvaguarda e valorização do património cultural por forma a assegurar a sua sustentabilidade?
Pensar no património cultural e na sua continuidade para o futuro não faz sentido se não o perspetivarmos num quadro mais abrangente da situação limite em que hoje o planeta Terra se encontra. Podemos arranjar estratagemas para minorar os efeitos que se irão sentir cada vez com mais intensidade das alterações do clima, como por exemplo nas zonas costeiras em todo o mundo, onde se concentra um manancial de património enorme, podemos procurar soluções a longo prazo, como os holandeses estão a fazer, ou como Veneza, mas tudo isso não fará grande sentido se todas e cada uma das nossas ações não tiver em conta que o problema é maior e que a salvaguarda do património no futuro é afinal um pequeno problema dentro de um grande problema. As secas, que começam a atingir partes expressivas do mundo, provocando fome, migrações e guerras, isso sim, é o grande problema. Para que o património perdure precisamos de ter a inteligência para perceber qual é o papel que ele pode ter para ajudar a resolver estas questões fulcrais, e investirmos a nossa energia nesse caminho.
Quais são os maiores desafios que o património cultural enfrenta?
É uma excelente pergunta, mas difícil de responder. Em 2018, durante o Ano Europeu do Património Cultural, tive a oportunidade de organizar uma Conferência Internacional na Gulbenkian exatamente sob esse tema, organizado em três painéis, basicamente sobre o conhecimento, a sustentabilidade e a gestão. Digo-lhe que, passados que são três anos, tudo mudou, não só com a pandemia do Covid19 que rebentou nos inícios de 2020, também a consciência mundial sobre a mudança climática motivada pelo aquecimento global tem vindo a mudar muito entretanto... e volto à mesma questão. Hoje, essa conferência provavelmente seria focada na sustentabilidade global e na sua relação com o património, e possivelmente perspetivaria as mudanças necessárias na aplicação do nosso conhecimento sobre ele e os contributos que pode dar para esta questão. O conhecimento e a sua aplicação nunca são neutros. Hoje, os maiores desafios para o património cultural são sem dúvida as alterações climáticas, o excesso de mobilidade em torno do planeta, o excesso de turismo massificado, o crescimento descontrolado da especulação imobiliária e os fenómenos de gentrificação, a perda das identidades, das caraterísticas e especificidades dos lugares, a degradação das paisagens e do ambiente construído, o feísmo... como vê, é uma longa lista. Talvez o maior desafio de todos seja saber utilizar o património realmente em benefício das pessoas e do equilíbrio das comunidades...
Em termos práticos, qual é o valor do património cultural para a sociedade?
Acho que para os economistas, em geral, o património cultural não passa de um stock de capital e exatamente por esse motivo justificam que deva ser preservado. É o caso dos investidores imobiliários nos centros históricos, ou os grandes investimentos turísticos em edifícios com alto valor histórico… não numa ótica de desenvolvimento global da sociedade, mas na perspetiva do crescimento da economia. Pelo contrário, os economistas culturais, ou pelo menos alguns deles, têm uma visão mais alargada, interpretando o património cultural como um recurso económico a ser explorado para iniciar processos de desenvolvimento. Depois temos o valor fundamental e insubstituível do património, para as pessoas e para a sociedade, como referencial da sua identidade individual e coletiva. A Convenção de Faro do Conselho da Europa, que é exatamente relativa ao valor do património cultural para a sociedade, é um texto de referência riquíssimo para toda a Europa que explicita muito bem o valor do património nos processos de desenvolvimento económico, político, social e cultural, no ordenamento do território, com uma visão integrada, com o objetivo de reforçar a coesão social. Tem no seu foco, no fundo, o desenvolvimento humano, o desenvolvimento em detrimento do crescimento, a qualidade em detrimento da quantidade. Uma sociedade sem património cultural é uma sociedade sem referências e sem memória e por isso condenada a desaparecer.
Na qualidade de perito do grupo de Trabalho para o património cultural da Comissão Europeia, como entende a relação que se deve estabelecer entre a sustentabilidade social, ambiental e económica e a sustentabilidade cultural?
Temos de olhar para estes aspetos, aparentemente desligados, de uma forma integrada, como as diferentes gavetas de um arquivo que só faz sentido no seu todo. Sem se procurar que o ambiente se vá recompondo e não se deteriore ainda mais, como é que se pode pensar em sustentabilidade económica e social para o futuro, quando são as alterações climáticas uma das principais causas das migrações e das guerras? No meio disto tudo está a cultura, e não falo do entretenimento. A cultura é aquilo que faz uma pessoa e uma comunidade, uma sociedade, serem aquilo que são, com as suas características particulares, com as suas referências, que lhes dão equilíbrio, que proporcionam a paz e a justiça, por exemplo. A cultura tem um papel fundamental na coesão da sociedade, tal como a educação, é transversal na sociedade e por isso deverá ser tomada em linha de conta em todas as suas atividades e setores. A questão da sustentabilidade é uma questão global, não podemos separar partes que são inseparáveis.
Que lugar ocupam a cultura e o património cultural no quadro da Agenda de Investigação e Inovação 2030?
Bom, existe uma Agenda Temática de Inovação e Investigação para a Cultura e o Património Cultural, publicada em 2019, que é um documento extremamente bem feito e que foi muito participado na sua elaboração. Essa Agenda tem influenciado as opções que têm sido tomadas nesta área. Sei que tem servido de base para identificar temas em várias iniciativas no lançamento de concursos transnacionais da Iniciativa de Programação Conjunta em Património Cultural em que a Fundação para Ciência e Tecnologia participa, e a partir de agora também associada com a Direção Geral do Património Cultural. São temas importantes e atuais, como a conservação, a proteção e o uso do património cultural, ou as identidades e perspetivas no património cultural, num quadro de mudanças nas sociedades. Essa agenda temática é um referencial importante, é um mapa que ajuda a perceber o que é mais ou menos pertinente em determinado momento, e isso é importante porque a investigação contribui para fundamentar as políticas culturais na sua relação com os outros setores, o económico, o social e o ambiental.
Dos 45 Itinerários Culturais Europeus, Portugal está presente em 14. Como pode contribuir para alavancar a dinamização cultural, patrimonial e turística, dando maior visibilidade a esses itinerários?
Primeiro, os Itinerários e as Rotas, ao nível nacional, têm de estar consolidados nas suas diferentes vertentes: a cultural, a turística, a educativa, a criativa e a da relação com as comunidades. Atualmente, as Rotas em Portugal apresentam diferentes estádios de desenvolvimento. Algumas estão já muito bem estruturadas, outras estão a fazer ainda o seu caminho. Por outro lado, as Rotas podem ter características muito diferentes; umas cingem-se a territórios bem definidos, podem ser percorríveis, têm um caráter regional; outras têm uma abrangência nacional, os parceiros estão muito distanciados uns dos outros, o que os une é mais o tema do que o território. Umas têm muitos parceiros, outras têm muito poucos... a diversidade é muito grande, e por isso a pergunta que faz tem de ter várias respostas. Se a Rota está estruturada e a funcionar, penso que o caminho será agregar cada vez mais parceiros, que poderão trazer novos projetos e atividades, tratar com especial atenção todos os aspetos que se prendem com a comunicação, e intensificar as relações com os outros países; este último aspeto penso que é sempre o desafio mais difícil, fazer chegar ao terreno esta dimensão europeia. No caso das Rotas que estão ainda a dar os primeiros passos ao nível nacional, terão necessariamente de ganhar escala; uma Rota não se faz com um sítio, pressupõe um investimento de trabalho considerável em procurar os parceiros certos e estruturar uma rede mínima que possa gradualmente crescer. A articulação e o intercâmbio com as redes dos outros países é muito importante para encontrar os bons exemplos e os bons modelos. Também existem os casos em que as redes são exclusivamente de nível europeu, em que os parceiros não se encontram organizados a nível nacional, mas na minha opinião é essencial que o estejam. Só dessa forma poderão ter a escala necessária para promover a tal dinamização cultural, patrimonial e turística de que falava, internamente, dando assim a estes sítios uma maior visibilidade.
Que benefício pode trazer ao património português fazer parte desta rede de itinerários?
É indiscutível que estar presente em redes que possibilitam o intercâmbio de ideias, o desenvolvimento de projetos comuns e da própria promoção conjunta, é fundamental para dois aspetos: primeiro, para o crescimento de cada um dos parceiros dessas redes, e segundo, para projetar e dar escala às atividades que se fazem. Se pensarmos nos catorze itinerários europeus que estão também no nosso país, e no conjunto de parceiros que têm no seu conjunto e nos recursos culturais e patrimoniais que envolvem, diria umas largas centenas em todo o território, podemos ter uma ideia do potencial de projeção de todos estes sítios patrimoniais através desta vasta rede. Por outro lado a credenciação europeia, porque é um processo exigente, atribui prestígio internacional, tal como o Património Mundial, ou a Marca do Património Europeu. E esse prestígio abre a porta a programas, facilita o acesso a candidaturas, dá visibilidade na promoção turística e cultural, obriga a maior investimento no conhecimento.
A certificação "Itinerário Cultural do Conselho da Europa" é uma garantia de excelência de uma rede que deve incluir a cooperação na pesquisa e desenvolvimento, a valorização da memória, história e património europeus, os intercâmbios educativos e culturais dirigidos aos jovens europeus, a cultura contemporânea e a prática artística, bem como turismo cultural e o desenvolvimento sustentável. No entanto, os cidadãos conhecem ainda pouco estes itinerários e o que têm para oferecer. Que medidas estão a ser tomadas para que esta comunicação seja feita de forma mais “democratizada” e inclusiva?
É verdade que estes Itinerários Culturais certificados pelo Conselho da Europa ainda são pouco conhecidos como tal. É preciso perceber que estes Itinerários ou Rotas credenciadas pelo Conselho da Europa são redes de parceiros de diferentes países europeus, geridas por entidades como associações, fundações ou federações, e existem várias modalidades de organização, envolvendo quer atores privados, quer atores públicos. Depois, conforme as caraterísticas dessa Rota, poderá ou não existir uma rede mais apertada em cada país; é o caso, por exemplo, da Rota Histórica das Linhas de Torres ou da Rota do Românico. São rotas nacionais, a nível regional, que agregam diferentes parceiros e sítios. Nestes casos, os parceiros são basicamente municípios. Quero com isto dizer que as pessoas conhecem as rotas nacionais, mas eventualmente desconhecem a sua dimensão europeia, o que não é de estranhar... essa é uma das tarefas que eu considero complexas nestes projetos, transmitir a dimensão cultural europeia na sua diversidade. Noutros projetos que coordenei, como as Jornadas Europeias do Património, essa era a parte mais difícil, a grande maioria das atividades acabavam por se centrar em aspetos locais ou regionais, o que em si não é mau, respondia ao objetivo de promover o encontro das pessoas com o seu património, mas claro que a dimensão europeia era secundarizada. Para responder mais concretamente à sua pergunta, desde 2019 começámos a promover reuniões com os representantes dos diferentes Itinerários europeus em Portugal para que se conhecessem e trocassem experiências, e em 2021 iniciámos uma série de ações de capacitação, a Direção Geral do Património Cultural em colaboração com o Turismo de Portugal, voltadas para aspetos práticos da gestão dos Itinerários, que teve muito bom acolhimento. É um projeto que irá continuar e que certamente contribuirá para enriquecer este programa no nosso país.
A Rota Histórica das Linhas de Torres integra o Itinerário Cultural Europeu “Destination Napoleon”. Enquanto membro do Conselho Consultivo da RHLT, como entende que esta pode contribuir para acrescentar visibilidade e operacionalidade a este itinerário?
Este Itinerário europeu, apesar de ser bastante recente, foi credenciado em 2015 e assenta numa rede de parcerias muito consistente, que é a Federação Europeia das Cidades Napoleónicas, fundada em 2004. Portanto, há muito trabalho desenvolvido até chegar ao reconhecimento por parte do Conselho da Europa. Reúne atualmente mais de cinquenta cidades em dez países e apresenta uma programação muito consistente, com uma direção competente. Penso que a celebração, em 2021, dos duzentos anos da morte de Napoleão Bonaparte, que em Portugal teve uma forte expressão, foi um bom exemplo daquilo que se pode e deve fazer para conseguir a tal visibilidade de que atrás falava. É interessante ver como as diferentes perspetivas sobre um mesmo acontecimento histórico, que marcou não só a Europa como todo o mundo, as Invasões Francesas, podem ser reintroduzidas através destas ações; num tempo em que se questionam, quase que por sistema, as ações que decorreram por esse mundo num outro tempo, num outro contexto de mentalidades e de valores. Por outro lado, por exemplo, o trabalho que está a ser desenvolvido pela Rota Histórica das Linhas de Torres com outros parceiros nacionais através da candidatura NAPOCTEP no programa transfronteiriço Interreg entre Portugal e Espanha, liderado pela Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra e envolvendo também a Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela, o Turismo Centro de Portugal, a Junta de Castylla y León ou a Fundação do Património Histórico Santa Maria la Real, entre outros, é um sinal de vitalidade que nem todos os Itinerários apresentam atualmente. Penso que este é o caminho certo.
As Linhas de Torres Vedras são um património único na Europa, cuja filosofia de construção coincidiu com a afirmação dos valores europeus de liberdade, igualdade e fraternidade, protagonizando um importante papel num período histórico que mobilizou praticamente todas as nações europeias e que, atualmente, constitui um importante símbolo cultural e um poderoso recurso educacional. Se considerarmos que os Itinerários Culturais Europeus devem conciliar a cultura com o turismo e a educação, como pode este património reforçar a sua presença no “Destination Napoleon”?
As redes de património funcionam com objetivos comuns. Quanto mais fortes forem os seus parceiros, maior será a sua projeção e quanto maior esta for mais visibilidade terá cada um dos parceiros. Interessa não perder de vista qual é, afinal, o fim último dos Itinerários Culturais e saber o que os distingue de outras rotas turísticas. Estamos a falar em modelos de organização de recursos culturais, que funcionam em rede e que idealmente funcionariam como modelos-rizoma, ou seja, a partir de cada um dos elementos dessa rede multiplicam-se novas redes, neste caso articulando os parceiros que desenvolvem atividades no campo da educação, no campo da construção de conteúdos, no campo das atividades criativas em torno de diferentes temas e no campo de todos os suportes da atividade de visitação, se quisermos utilizar um termo do turismo. Então é na conceptualização e na implementação destas redes rizoma, neste caso da Rota Histórica das Linhas de Torres a partir de cada um dos seus núcleos, fortalecendo-as, que se poderá encontrar o reforço desta rota nacional no contexto da rede europeia.
As Linhas de Torres Vedras atravessam o território de seis concelhos e distribuem-se por cerca de 80km, com trinta fortes visitáveis, seis percursos temáticos e uma rede de seis centros de interpretação. Como pode este património reforçar a sua ligação à comunidade, caminhar para alcançar a sua sustentabilidade e contribuir para a sua qualidade de vida?
Penso que hoje o património só faz sentido na sua relação com as pessoas e com as comunidades; se assim não for, que significado terá e para quem? Mas essa relação é complexa, e passa pelo uso que possamos dar a esses patrimónios. O património é um importante recurso económico, como já referi antes, que como qualquer recurso pode ser explorado para a criação de empresas, nestes contextos normalmente pequenas empresas, negócios e atividades que servem os utilizadores, os visitantes, os turistas e aqueles que trabalham na própria Rota. A consistência e a diversificação destes negócios e atividades associadas à Rota, evitando dependências exclusivas, olhando para diferentes tipos de consumidores, são o que poderá dar a tal sustentabilidade, tanto quanto possível hoje em dia, mas penso que o esforço deverá ir nesse sentido. E depois, o património é o recurso fundamental para ajudar a manter o que se chama a identidade cultural numa determinada área geográfica, o que, com o fenómeno da globalização, se torna por vezes muito difícil, uma missão quase impossível. Muitas vezes é necessário recriar essa identidade, ou melhor, essas identidades, e procurar que as comunidades voltem a tecer algum tipo de relação com as ideias e os valores que estão associados. Para isso deve começar-se pelo início, exatamente pelas crianças e pelas escolas, pelas comunidades escolares, através dos agrupamentos escolares, trazendo os professores, que são os elementos-chave deste processo e os elementos multiplicadores junto de centenas, milhares de crianças e jovens.
Que instrumentos de gestão podem contribuir para alcançar o equilíbrio, necessário aos habitantes de cada local, entre a atividade turística e a comunitária, entre o comércio turístico e o de proximidade?
Os itinerários e as rotas culturais não têm as caraterísticas para alimentar um turismo massificado. A experiência de um lugar está no seu centro. Podem tornar-se novos espaços de descoberta, e uma ferramenta inovadora a utilizar nos territórios, com um grande potencial para dar um maior valor aos setores social, económico e cultural. Uma das mais-valias dos Itinerários e das rotas culturais reside no facto de valorizarem as identidades locais partilhadas pelas comunidades. Estas identidades, para as quais contribuem inúmeros fatores, e que interessa conhecer a fundo, são recursos culturais únicos, singulares, não reproduzíveis, que poderão, pela sua peculiaridade, e até pela sua raridade, autenticidade e qualidade da sua conservação, atrair muitos visitantes e grupos específicos de turistas. Atrair também novos profissionais para novos tipos de atividades. Atrair os jovens, enquadrando-os em projetos educativos e artísticos. No fundo, todos têm uma expectativa comum, que é descobrir e sentir a identidade de um lugar, de um território, seja ele constituído por uma imagem, por um assunto, por uma história ou por um mito. E se conseguirmos passar a mensagem da escala europeia, o objetivo estará cumprido.
Que importância têm as Jornadas Europeias do Património para a divulgação do património junto dos públicos?
É o programa do Conselho da Europa com maior participação anual, que traz pessoas de todas as idades para o mundo do património durante o último fim de semana de setembro, todos os anos. Para ter uma ideia, só em Portugal, anualmente, contamos com várias centenas de entidades públicas e privadas, associações e muitos municípios que promovem milhares de atividades. É sempre difícil estimar a quantidade de pessoas envolvidas, mas não erro muito se falarmos de várias dezenas de milhares de participantes. É claro que a dimensão europeia que está por detrás deste programa nem sempre está explícita, nem sempre é direta, ou nem sempre existe mesmo. Mas aquilo que é mais importante, no fundo, é durante dois ou três dias ser possível aproximar as pessoas de temas relacionados com o património, para que o conheçam melhor e para que o cuidem, e isso é sem dúvida plenamente conseguido.
Que orientações, em termos de política geral, destacaria da Convenção do Património Mundial?
A Convenção para a proteção do Património Mundial, Cultural e Natural tem como objetivo a proteção e a valorização do património que se reconhece possuir um valor universal excecional. No entanto todos sabemos que nas últimas dezenas de anos se têm verificado enormes alterações mundiais ao nível económico, político, social e cultural, fundadas na gradual globalização do planeta. E que isso tem vindo a alterar a perceção da sociedade sobre o património cultural e o património natural, assim como sobre o património mundial, e também a sua gradual utilização por uma das maiores indústrias mundiais, o turismo, com um crescimento em flecha motivado pela muito maior mobilidade no planeta e pela expansão das novas tecnologias de comunicação e das redes sociais. Tudo isto tem vindo a moldar e a alterar as perspetivas sobre o património mundial… já há algumas dezenas de anos os políticos e gestores das cidades e sítios com património mundial iniciaram autênticas batalhas para polarizar turistas e investimentos, capitalizando os emblemas patrimoniais dessas cidades e desses sítios, um fenómeno que perdura, com nuances, mas mais ou menos generalizado. Nos últimos anos, o excesso de turismo e os efeitos negativos colaterais, como o esvaziamento das cidades dos seus habitantes, a diminuição e alteração do tipo de comércio, agora direcionado para os turistas, o aumento de preço incomportável da habitação e o consequente fenómeno de gentrificação, de que a cidade de Veneza é um ex-libris, vieram chamar a atenção para a insustentabilidade destas situações. Entretanto, a pandemia do Covid-19 mostrou ao mundo o que eram estas cidades e estes sítios sem o excesso de turismo de massas… por outro lado, a dependência das economias urbanas do próprio turismo evidenciou a necessidade absoluta de se estabelecerem políticas urbanas mais viradas para os habitantes, menos dependentes de uma indústria que de um momento para o outro pode parar, como se viu, políticas mais viradas para o desenvolvimento do que para o crescimento, exigindo mais qualidade e menos quantidade. Por isso, para implementar os bons princípios da Convenção ter-se-á necessariamente de implementar estas outras políticas. Muito trabalho tem desenvolvido a UNESCO na análise destas questões, no estudo e na definição de orientações para tentar colmatar e minimizar estes vários efeitos perversos do crescimento, na monitorização dos milhares de sítios inscritos na Lista do Património Mundial e no aconselhamento aos gestores destes sítios e aos próprios governos.
Tendo em conta a sua experiência, que estratégia aconselharia à RHLT para a sustentabilidade e divulgação do património das Linhas de Torres Vedras?
Penso que há quatro aspetos importantes: em primeiro lugar, o reforço de parcerias locais. O turismo cultural, e em especial os itinerários e rotas no espírito do Conselho da Europa, deve procurar diferenciar-se do outro turismo. Como? Através daquilo que oferece aos visitantes. Ninguém fica indiferente se consegue ficar a conhecer mais do que aquilo que conhecia antes de uma visita. Segundo, o reforço do conhecimento; é fundamental investir no conhecimento, que acaba por ter uma aplicação prática em inúmeros aspetos associados às Rotas. São importantes as parcerias com as universidades e os institutos politécnicos. As próprias universidades são veículos de divulgação muito importantes. Procurar associar à Rota serviços complementares com qualidade, por exemplo de guias, de restauração e de comércio, que possam enriquecer todo o tempo de visitação. Procurar estabelecer associação com vários promotores de espetáculos, que tragam os espetadores que serão os futuros visitantes, que captem os interesses dos jovens. Trazer artistas para trabalhar num contexto singular, através de residências temporárias de criação e de inovação, atividades experimentais, atraindo sobretudo jovens criadores. Pensar numa comunicação integrada com outros promotores de roteiros patrimoniais, saindo para além da escala regional. Em terceiro lugar, o reforço da ligação à comunidade, através fundamentalmente dos agrupamentos escolares e dos professores, os grandes multiplicadores de conhecimento. Por último, trazer o mundo digital para o projeto; o conhecimento, a comunicação, a construção de conteúdos, a promoção, são todas áreas de atividade que exigem atualmente o recurso ao digital; a forma como eu encontro o meu projeto nessa enorme trama de informação das redes de comunicação, das redes sociais, das redes de intercâmbio, diz-me o que é o meu projeto, quem o conhece, quem fala sobre ele, quem está interessado em saber sobre ele. Esta é uma outra realidade que não podemos ignorar.