Presidente da ACCESSIBLE PORTUGAL, integra a Direção da European Network for Accessible Tourism, na qualidade de representante de Portugal.
Falámos com Ana Garcia sobre como o Turismo, atividade estratégica para Portugal, pode ser também um fator de desenvolvimento regional, dinamizando uma multiplicidade de áreas e agentes que, de forma transversal, devem trabalhar em rede e contribuir para um turismo “de todos para todos”.
Como é que uma gestora financeira, auditora e analista empresarial de projetos de investimento passa a promotora do Turismo Acessível em Portugal?
A vida dá muitas voltas, e é importante estarmos abertos à mudança, àquilo que faz sentido no nosso caminho enquanto pessoas com uma missão para cumprir. Toda a minha caminhada na vertente da gestão financeira alavancou o trabalho que hoje desenvolvo. Nada se perde! Ainda estava no IAPMEI, onde trabalhei, com muito gosto, durante 18 anos, quando tive conhecimento de que um projeto, chamado Acessible Portugal, tinha ganho um prémio [NR: prémio INOV 06]. Apaixonei-me e quis participar. A vontade e o envolvimento foram crescendo e em 2007, tomei a decisão, consciente, de mudar de vida e abracei este desafio… que nunca mais parou.
De que forma nasce a primeira agência turística especializada no segmento do Turismo Acessível?
Nasce depois de uma iniciativa bem-sucedida, de uma empresa de animação turística, e no sentido de poder oferecer uma gama mais alargada de produtos e serviços a clientes com deficiência, sobretudo motora.
O que a levou a criar a marca Accessible Portugal, dirigida a um público com necessidades especiais?
A necessidade de dar resposta a uma lacuna no mercado e ao mesmo tempo alavancar os direitos das pessoas com deficiência e das suas famílias. A ideia sempre foi dar visibilidade às pessoas com deficiência, numa ótica de inclusão. Ao qualificarmos os territórios e destinos turísticos para receber clientes e visitantes com necessidades específicas, estamos, em primeiro lugar, a qualificar esses territórios para quem lá reside. Esta é uma mais valia do turismo: melhorar a qualidade de vida dos residentes.
Nas suas palavras: “O Mundo é global, a idade dos turistas está a aumentar e é necessário criar condições para que todos possam viajar em segurança e com a qualidade de que necessitam para apreciarem os destinos. Trata-se de uma questão de dar resposta às necessidades do mercado e igualmente uma questão de ética”. Foi a partir desse pressuposto que começou a construir a missão da Accessible Portugal?
O nosso envelhecimento traz naturalmente limitações de ordem motora, auditiva, visual e cognitiva. Ao prepararmos a nossa oferta turística para receber públicos com limitações próprias deste processo de envelhecimento, estamos a aumentar o leque de respostas a uma diversidade maior de clientes. A vontade de viajar não tem vindo a diminuir ao longo da vida, mas as situações de limitações severas/incapacidades crescem exponencialmente com o avançar da idade. Assim, preparar uma oferta turística que respeite as diversas limitações decorrentes deste processo de envelhecimento traz, naturalmente, uma oportunidade de mercado.
A missão da Accessible Portugal tem sido, desde sempre, encontrar as melhores soluções para alavancar a qualificação das respostas no destino, no sentido de garantir melhor qualidade, segurança, dignidade e autonomia às pessoas.
Como se explica que tantos equipamentos, operadores turísticos e hoteleiros e agentes de animação turística ainda estejam mal preparados para receber clientes com necessidades especiais?
O cenário tem vindo a mudar drasticamente nos últimos tempos, no sentido positivo. Há uma consciência coletiva maior, tanto por motivos de ética e de responsabilidade social, como por necessidade de dar resposta a um mercado em mudança.
Que papel podem os cursos das escolas do Turismo de Portugal desempenhar na capacitação e sensibilização para o tema do Turismo Acessível?
Têm vindo a desempenhar um papel fulcral, pois dão um sinal de aposta estratégica na temática e demonstram uma coerência com o disposto na Estratégia para o Turismo até 2027.
Acha que a abertura de uma Linha de Apoio ao Turismo Acessível, por parte do Turismo de Portugal, seria uma experiência a repetir, uma vez que atualmente parece existir uma maior conscientização para estas necessidades de oferta no mercado?
Sem dúvida que sim. Creio que estará para breve. No âmbito do Programa Valorizar, as candidaturas dedicadas ao Turismo Acessível são uma aposta clara da Autoridade Nacional para o Turismo. Outras candidaturas de projetos a qualquer investimento no setor devem ser obrigadas a cumprir requisitos de acessibilidade para todos. Não pode haver financiamento público a projetos que não cumpram esta abordagem. As questões de acessibilidade são cada vez mais mandatórias.
Qual o diagnóstico que faz quanto à empregabilidade de pessoas com necessidades especiais no setor do turismo e da cultura?
Ainda é escassa. Todas estas mudanças fazem parte de processos de evolução e não de situações isoladas. Ao aumentar a oferta turística para receber clientes com necessidades específicas, naturalmente abrir-se-ão oportunidades para colaboradores com deficiência. Do ponto de vista da imagem dos recursos turísticos perante os clientes, é relevante mencionar o impacto que tem um staff que inclua colaboradores com deficiência. Contudo, a formação profissional também tem de ter valências para formandos com incapacidades. O foco deverá ser na valorização das capacidades de cada um e não na exacerbação das deficiências.
Enquanto consultora e formadora, tem vindo a impulsionar a acessibilidade e a qualificar a oferta turística acessível através de vários projetos. Além dos cursos, a Accessible Portugal também organiza eventos acessíveis?
Sim, organizamos eventos e atividades, inseridos nos projetos que desenvolvemos. A intenção é qualificar as pessoas com deficiência para que participem em atividades, ajudando assim a oferta a entender as suas necessidades. Há também a demonstração de que nem sempre é difícil ter atividades acessíveis e que as expectativas das pessoas com necessidades especiais são muito baixas, fáceis de satisfazer e, mesmo, de superar.
Como avalia hoje os resultados do projeto BRENDAIT – Building a Regional Network for the Development of Accessible and Inclusive Tourism, que teve como objetivo ser impulsionador de uma dinâmica de transformação progressiva do território para um destino turístico mais acessível e inclusivo?
A distância permite-nos ter uma informação mais fidedigna dos resultados do projeto. De facto, o BRENDAIT permitiu-nos verificar que os territórios avançam a velocidades diferentes e que cada recurso turístico também. A gestão destas diferenças permite não deixar ninguém para trás. Aprendemos que uma metodologia de proximidade é motivadora para a adesão e abertura à temática do turismo acessível e inclusivo. Há ainda muitos estereótipos associados, por exemplo, o de que turismo acessível é igual a turismo para pessoas com deficiência, que por sua vez é igual a turistas em cadeira de rodas. Há ainda muito caminho a fazer!
Em 2018 lançou a TUR4all, uma plataforma e aplicação móvel de informação e divulgação da oferta turística acessível em Portugal. O que significa para si este projeto?
A TUR4all representa a concretização da resposta a uma necessidade identificada: dar informação correta, atualizada e fidedigna sobre as condições de acessibilidade dos recursos turísticos, para que os visitantes possam, de uma forma responsável, tomar as suas decisões. É uma ferramenta com um potencial imenso. A ideia desta iniciativa foi adaptar para Portugal e aportar melhorias a uma ferramenta já com muitas características diferenciadoras e úteis para pessoas com necessidades de acessibilidade, para que possam planear as suas viagens e deslocações, sabendo de antemão as condições de acessibilidade dos locais para onde se pretendem dirigir.
A grande diferença da TUR4all é o seu alcance (plataforma ibérica com sete idiomas) e o facto de não classificar subjetivamente os recursos turísticos em “acessíveis”, “não acessíveis” ou em “parcialmente acessíveis”. A informação é objetiva. As necessidades de acessibilidade são muito diferentes, em função da tipologia de incapacidade, da idade, do facto de a viagem ser feita de forma autónoma ou acompanhada, etc., etc. A TUR4all passa o ónus da escolha para o turista/visitante. Ele determina se dado recurso turístico tem ou não as características que lhe convêm, em determinado contexto e em função de critérios que são apenas do conhecimento da pessoa que vai viajar ou do seu grupo de acompanhantes.
À oferta turística cabe dar a informação correta, atualizada e fidedigna para que o cliente possa tomar a sua decisão de forma consciente, em função do que vai encontrar no destino. É ainda um estímulo para uma melhoria contínua das condições de acessibilidade dos recursos turísticos e dos destinos.
A TUR4all permite-nos ainda ter uma metodologia de abordagem consistente, testada e aplicada em Portugal e Espanha.
O Centro de Inovação do Turismo e a Associação Accessible Portugal lançaram a GuestAccess, uma web app gratuita desenvolvida com o apoio do Turismo de Portugal. Qual é o seu objetivo e como funciona esta aplicação?
A GuestAccess é mais uma ferramenta, dedicada principalmente aos profissionais do Alojamento Turístico, para que de uma forma rápida e direta acedam a dicas sobre a forma de atender e receber bem clientes com diversos tipos de necessidades específicas. Aposta na gamificação [NR: prática de aplicar mecânicas de jogos em diversas áreas], através de quizzes para ajudar a memorizar pequenas soluções que podem fazer toda a diferença na estadia de um cliente. Tem ainda uns pequenos vídeos com desenhos animados que alavancam o acesso a conteúdos sobre boas práticas de acessibilidade e atendimento inclusivo.
Está também envolvida no projeto AccessTUR – Centro de Portugal. Entre os beneficiários deste projeto estão três dos municípios fundadores da Rota Histórica das Linhas de Torres (Arruda dos Vinhos, Sobral de Monte Agraço e Torres Vedras). Como vê a qualificação da oferta e da procura turísticas nestes territórios e o seu estado de desenvolvimento na promoção do turismo acessível e inclusão social?
Esse “mega” projeto tem sido um desafio enorme e tem-nos dado a oportunidade de trabalhar um território riquíssimo e muito diverso na sua oferta. A temática permite-nos ir muito para além da acessibilidade física, pois muitos dos locais de origem das Linhas de Torres têm condicionantes ao acesso físico de pessoas com mobilidade reduzida. O AccessTUR permite, de uma forma concertada entre estes três Municípios, trabalhar algumas ferramentas no âmbito da comunicação acessível e inclusiva, nomeadamente informação em multiformato, isto é, a informação a transmitir aos visitantes deve existir em formatos alternativos e adequados a diversas incapacidades, como pessoas com deficiência visual, auditiva, cognitiva ou intelectual. Neste sentido, preparou-se informação em escrita simplificada, em Braille, em Língua Gestual Portuguesa, em imagens táteis, em relevo 2D e 2D1/2, em audiodescrição de imagens visuais, etc. O AccessTUR faz também a apologia do trabalho em rede entre os diversos parceiros dos territórios, por forma a permitir ganhar escala nos produtos turísticos, e permite acesso a formação profissional em competências de atendimento inclusivo. Serão ainda elaborados guias de informação turística acessível dos diversos subterritórios da região, assim como de uma forma agregada, através da recolha de mais de 440 visitas técnicas TUR4all, entre muitas outras atividades do projeto.
Para chegar a esse mercado, que engloba públicos com características específicas, que caminho precisa a Rota Histórica das Linhas de Torres de continuar a trilhar?
Continuar a ter vontade e a acreditar que esta é uma abordagem holística, transversal e mandatória, que integra um dos pilares da sustentabilidade do turismo e que numa população cada vez mais envelhecida, mas com uma vontade sempre maior de visitar e viajar, preparar a oferta para Todos é uma questão de inteligência, de ética, de responsabilidade social e de diferenciação positiva dos destinos.
A RHLT é sensível à criação de condições para uma maior acessibilidade e inclusão dos públicos que visitam o seu património. Atualmente, está envolvida em vários projetos desta natureza, designadamente no projeto Rota Histórica das Linhas de Torres: Comunidade e Turismo Sustentável, apoiado pelo Turismo de Portugal, que pretende implementar um programa de educação patrimonial e criar recursos e ferramentas para um património mais “friendly” para todas a pessoas. Que conselho nos daria, tendo em conta que parte considerável do nosso património está localizada em sítios pouco acessíveis, o que é já, por natureza, um enorme desafio?
A criatividade é o limite. Existem várias formas de se tornar património que foi construído para não ser acessível (é o caso concreto) em acessível. O que não é opção é destruir o autêntico e original em nome da acessibilidade. As pessoas com limitações, incapacidades ou diversos tipos de deficiência não querem isso! Há formas de criar soluções, e a RHLT tem sido exemplar nessa matéria com as obras de requalificação efetuadas, com os formatos alternativos, com materiais de apoio. Pode ainda investir-se em ajudas técnicas, como por exemplo, cadeiras de rodas todo-o-terreno, cadeiras Joëllete, com visitas virtuais, em realidade aumentada, de locais mais inacessíveis, com maquetes e com réplicas de armamento, entre tantas soluções. Fundamental será sempre um atendimento inclusivo, perguntando às pessoas como podem melhorar, e estar-se aberto a essa melhoria contínua e em rede com os diversos parceiros.
Melhorar a acessibilidade da informação turística, dos meios de deslocação, das infraestruturas e a preparação dos serviços de atendimento para os turistas com todo o tipo de necessidades, é para a RHLT uma aposta fundamental. Que modelos e boas práticas recomenda para vencermos este desafio?
A primeira grande ferramenta é a formação. Ninguém pode gostar daquilo que não conhece. Sem se ter a noção da diversidade funcional do ser humano, de como receber bem em função de incapacidades físicas, sensoriais ou cognitivas, nunca se conseguirá encontrar soluções criativas que respondam às necessidades dessas pessoas e dos seus grupos de relação. É importante entender que a pessoa com maiores vulnerabilidades será sempre a decisora do grupo/família/amigos, se uma atividade se pode e se vai ou não fazer. Quanto mais inclusiva for, quanto maior capacidade de resposta tiver, mais expectativas vai superar a esses públicos e gerar-se-á um ciclo virtuoso, onde as soluções vão surgindo e o entusiasmo de conseguir dar respostas inclusivas a cada vez mais pessoas, diferentes, será o motor da melhoria contínua.
Estão no bom caminho! Bem hajam…