Conversámos com o engenheiro informático José António Faria e Silva, impulsionador da constituição da Associação Napoleónica Portuguesa e seu presidente há vários anos, sobre o papel da recriação histórica na preservação da memória do património imaterial e no rememorar a identidade de um povo.
Associado fundador da Associação Portuguesa de Colecionadores de Armas, da Associação Portuguesa para a Preservação e Estudo de Armas Históricas e da Liga dos Amigos do Museu Militar de Lisboa, sempre se interessou pelo estudo e colecionismo da armaria antiga, em especial a referente ao período napoleónico.
Entre as muitas atividades que vem desenvolvendo, é coautor do livro “Armamento Ligeiro da Guerra Peninsular: 1808-1814” e autor de várias publicações e comunicações sobre o tema, tanto em Portugal como no estrangeiro. Atualmente, é uma referência no conhecimento da Guerra Peninsular e das Guerras Napoleónicas.
Quando se começou a interessar pelo tema da Guerra Peninsular e das Guerras Napoleónicas?
Desde muito jovem, e pela mão do meu avô, que era professor de História, assisti várias vezes às comemorações oficiais da Batalha do Buçaco, organizadas pelo Exército Português, o que criou em mim um fascínio pela beleza dos uniformes e armamento usados naquela época. Mais tarde, já adulto, interessei-me seriamente por esse período tão marcante para o nosso país, estudando mais aprofundadamente essa temática.
Organiza ou coorganiza eventos de recriação histórica, com a colaboração de diferentes grupos ou associações. Quando sentiu a necessidade da constituição de uma associação que incluísse os grupos de recriação histórica que trabalhassem, em Portugal, sobre o período napoleónico?
A Associação Napoleónica Portuguesa, ou ANP, teve a sua génese em 2002, sendo constituída por escritura pública em 2003 como a primeira associação de recriação histórica do período napoleónico em Portugal. Desde esse ano e até 2015 coordenou e organizou, em Portugal, todos os eventos de recriação histórica relativos ao bicentenário da Guerra Peninsular, assim como participou noutras recriações históricas no estrangeiro. Em 2015, e com o surgimento de vários grupos e associações de recriação histórica desse período, foi decidido, em Assembleia Geral, transformar a ANP numa entidade federativa que congregasse todos esses grupos e associações, sendo o garante do rigor histórico em todos os eventos.
Qual foi a primeira recriação histórica em que participou e que significado teve esse momento para si?
Foi em 2003, na pequena aldeia espanhola de Albuera, a escassos quilómetros de Badajoz. Nesse local foi travada, em 1811, uma das mais sangrentas batalhas da Guerra Peninsular, em que o Exército Português se notabilizou, mais uma vez, pela sua valentia e coragem. A participação nessa recriação veio potenciar o meu desejo de relembrar a participação do exército português e do seu povo na Guerra Peninsular.
Qual é a missão da ANP?
Não deixar cair no esquecimento um período tão marcante para Portugal, relembrando os nossos soldados e a gente do povo que, com a sua coragem e determinação, conseguiram escorraçar o exército invasor.
Como se relaciona a ANP com as suas congéneres europeias?
Desde a sua formação que a Associação Napoleónica Portuguesa tem uma ótima relação com as restantes associações napoleónicas europeias, tendo assinado, em 2013, um protocolo de cooperação com a Associação Napoleónica Espanhola.
É importante celebrar datas comemorativas relacionadas com as campanhas napoleónicas?
É importante, principalmente para as camadas mais jovens, não deixar cair no esquecimento datas de eventos tão importantes para a nossa história.
A que ponto pode a recriação contribuir para a identidade histórica e para a memória coletiva do povo português?
Uma imagem vale por mil palavras. Recriando eventos com o máximo rigor histórico consegue-se transmitir uma imagem fidedigna do nosso exército da época, sem esquecer as gentes do povo, que tanto se sacrificou. Este é o melhor contributo da recriação histórica, séria, para avivar a nossa memória coletiva.
Que contributo pode ser dado pelo Exército Português na consolidação do trabalho da ANP?
Desde a sua fundação que a ANP tem recebido todo o apoio por parte do Exército Português, apoio esse que contribuiu para consolidar, em nosso entender, a importância da nossa atividade como um contributo positivo na divulgação da nossa história militar. Essa colaboração continua, com responsabilidades acrescidas após a assinatura, em 2018, de um protocolo de colaboração entre a ANP e o Exército Português, representado nesse ato pelo Ex.mo Senhor Major-General Aníbal Flambó, Diretor da Direção de História e Cultura Militar.
Sendo uma referência para os grupos de recriação histórica que trabalham esta época, que relação mantém a ANP com os grupos seus associados?
A ANP presta toda a colaboração aos diversos grupos e associações seus aderentes, partilhando com todos os saberes e experiências adquiridos ao longo dos seus vinte anos de existência.
A que requisito deve obedecer um grupo para ser considerado um grupo de recriação histórica?
Sendo esta uma atividade não remunerada, o primeiro requisito é a força de vontade e dedicação na divulgação cultural. O segundo, e havendo, deste período histórico, extensa bibliografia e iconografia, a sua recriação ou reconstituição tem de seguir essas fontes primárias, não havendo lugar a “invenções” que descredibilizariam o nosso objetivo.
Pode a ANP ajudar pessoas ou grupos que queiram iniciar-se na recriação histórica?
Estatutariamente, a ANP apoia a formação de novos grupos e associações que queiram aderir a este projeto.
Disponibilizam atividades formativas e/ou oficinas de aprendizagem e treino para quem queira ser recriador?
A ANP colabora com entidades públicas ou privadas na formação dos elementos de novos grupos e associações de recriação histórica do período napoleónico, coorganizando atividades formativas e disponibilizando informação relevante para a consolidação do conhecimento dos mesmos nesta área.
Como vê o estado atual da recriação histórica em Portugal?
Ao longo dos últimos anos tem havido um incremento desta atividade, infelizmente interrompida em 2020 e 2021 devido à pandemia. No entanto, neste ano de 2022, vejo com satisfação o retomar da mesma, com redobrado entusiasmo.
Quantos recriadores históricos existem atualmente no país?
Nesta data estão federados na ANP cinco grupos/associações de recriação histórica, a saber, Grupo de Reconstituição Histórica do Município de Almeida, Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro, Associação Portuguesa de Recriação Histórica, Associação de Cultura e Recreio 13 de Setembro de 1913 e Grupo de Recriação Histórica de Condeixa, num total aproximado de 200 membros.
Que contributo pode a recriação histórica dar para a dinamização do Turismo Militar ou das Emoções?
A atividade da recriação histórico militar está intimamente ligada ao Turismo Militar, sendo um parceiro importante neste segmento do turismo cultural. A ANP é associada honorária da Associação de Turismo Militar Português e da Rota Histórica das Linhas de Torres.
Concorda com os que defendem que a recriação histórica deve ser entendida como uma living history, recriando o passado nas várias vertentes: civil, militar, quotidiana, científica ou artística, modo de trajar, falar e agir? Ou prefere o conceito de re-enactment, recriando um evento histórico como se de uma peça artística se tratasse, baseada nos factos e nos seus desenvolvimentos históricos?
Existe lugar para as duas abordagens. A atividade da ANP sempre se pautou pelo máximo rigor histórico em termos de fardamentos, armamento e postura militar. O mesmo acontece nos seus departamentos que recriam a sociedade civil da época, sendo, para nós, o conceito living history o mesmo que re-enactment. os recriadores históricos não são figurantes nem artistas, são homens e mulheres interessados na divulgação da nossa história, com conhecimentos nas áreas que recriam, e fazem-no graciosamente, muitas vezes com sacrifício das suas vidas familiares. O teatralizar artisticamente um evento histórico é uma maneira mais livre de o transmitir ao público. Uma coisa é recriação histórica, outra é recreação histórica, sendo ambas importantes para a divulgação da nossa História.
Como podem as recriações históricas ser incluídas na estruturação de um produto turístico que acrescente valor aos territórios?
Há que ter uma visão abrangente do Turismo Militar, parte integrante do Turismo Cultural. O turista que se interessa pelo património cultural, material como imaterial, por certo veria com agrado alguma atividade de recriação histórica em sítios específicos, que teriam de ser definidos e apoiados pelas entidades que os tutelam.
De que modo interagem os recriadores com o público de forma a permitir-lhe uma experiência diferenciadora?
Nos locais onde têm lugar as recriações históricas de um evento militar existem estruturas montadas para que haja interação com o público, mostrando as vivências da época, tanto militares como civis, sendo muito gratificante verificarmos o interesse que essas atividades complementares despertam na assistência, principalmente nas camadas mais jovens.
No caso das Linhas de Torres, o que pode a recriação histórica acrescentar à competitividade deste destino turístico-cultural?
As Linhas de Torres Vedras são um destino histórico militar por excelência. Uma programação bem elaborada e coordenada de eventos de recriação histórica seria, por certo, uma mais-valia para o rico património edificado, dando-lhe uma nova vida.