DEZEMBRO 2024 A JUNHO 2025
Foto Catarina Bandeira

José Bandeira

Uma entrevista com o criativo dos sete instrumentos


Humorista, cronista, cartoonista (está representado no Sammlung Karikaturen & Cartoon Basel e na antologia internacional Os Melhores Cartoons Políticos da Actualidade), artista plástico, designer gráfico, fotógrafo, músico… Publicou n’O Século, Diário de Lisboa, Diário Popular, Diário de Notícias e Jornal de Notícias, entre outros jornais e revistas. Trabalhou em publicidade e como Diretor Criativo em geração gráfica para televisão e multimédia. Fez filmes de animação. Foi premiado demasiadas vezes para que as possamos aqui detalhar. Tantas são as suas atividades criativas que se torna difícil perceber qual a principal. Por aqui, gostamos de dizer de si que é um “homem do Renascimento”. Sente-se de facto um?
É uma atribuição elogiosa, muito simpática e manifestamente exagerada, que agradeço. Devido à minha exposição na imprensa, no passado era talvez mais visto como cartoonista, mas não distingo hierarquicamente entre as coisas que faço. Todas me dão prazer, ou não as faria.

É possível conjugar todas essas disciplinas artísticas numa obra apenas? Ou cada uma das suas atividades criativas decorre em momentos distintos?
Wagner definiu o conceito de “obra de arte total”, uma síntese de todas as disciplinas artísticas — música, artes visuais, teatro, poesia, etc. — que transcendia as fronteiras das formas de arte individuais para criar algo maior do que a soma das suas partes. Existe algo de muito satisfatório no actual estado da tecnologia e da sua relação com as artes, em que é possível a um criativo produzir “obras de arte totais” virtualmente sozinho, algo impensável há apenas algumas décadas.
 
Produz palavra e imagem. São equivalentes?
Ambas são mediação entre o ser humano e o mundo. A imagem pode valer por mil palavras e a palavra pode igualmente valer por mil imagens, porque a nossa imaginação faz com a palavra malabarismos mil.



A desenhar, a escrever e até a fotografar, nunca deixou de trabalhar com humor. Há hoje assuntos com os quais não se pode ou deve fazer humor?
Não existem coisas sérias — há coisas que devem ser levadas a sério, porque têm consequências. Cabe ao humorista medir as consequências do seu humor e agir como lhe dita a consciência.

Publicou em grande parte dos diários nacionais portugueses. É importante, hoje, publicar em papel, como a Rota Histórica faz com a revista Invade? E online, como com o InvadeMAG?
É fundamental. A revista impressa tem a credibilidade de um processo tradicional e fiável, proporcionando uma experiência sensorial que nenhum outro meio substitui com vantagem. A versão online é o meio por excelência para disseminar conteúdos, acrescentá-los e torná-los acessíveis em todos os locais onde a versão impressa não pode chegar. Se, por absurdo, imprimíssemos a Web “para ler mais tarde”, não haveria no mundo inteiro papel que chegasse. É certo que grande parte, se não a maioria, destes conteúdos é lixo. Por isso diria que as páginas Web mais importantes hoje são, não as que apenas fornecem conteúdos, mas as que, organizando-os, seleccionando-os e classificando-os, fazem, na prática, a função de um editor. O portal InvadeMAG, da Rota Histórica, cabe nesta categoria de aglutinador de informação ou, se quiser, de interface entre o leitor e a região das Linhas.

Podem as regiões, e a das Linhas em particular, aspirar a um maior reconhecimento cultural?
Há apenas alguns anos, seria necessário estar-se numa grande cidade para se ter sucesso na área da cultura. Hoje é possível uma região fazer mais e melhor do que qualquer cidade, se eleger como meta, não o mediano, mas o melhor. Querer apenas o suficiente é meio caminho andado para se cair no medíocre. Publicar uma revista é sempre um acto cultural. Fazê-lo a partir de uma região é um acto cultural necessário. 

Desenhou o InvadeMAG, um produto tecnológico. Não só não receia a tecnologia como é prolífico no seu uso. As novas tecnologias abriram caminho à criatividade, mas receia-se que também o façam à mediocridade.
Embora eu tenda a ser pessimista, e um pessimista não é mais do que um optimista bem informado, prefiro ver as coisas pelo potencial que têm. Ainda não há muitos anos, fazer um filme (por exemplo) exigia um financiamento inacessível à grande maioria dos criadores. Hoje, um videógrafo com talento pode realizar um pequeno filme sozinho, utilizando tecnologia acessível. Claro que o rácio entre lixo e obras válidas é esmagador para o lado do primeiro, mas — e então? Ignoremos o lixo. Se visitar os arquivos de uma grande ou média biblioteca, verá que estão atulhados de má literatura produzida nos dois séculos passados.

Há quem veja a IA como uma espécie de “democratização” do talento. Impressiona-o, esta “tomada do poder” criativo pela máquina?
Mais do que aquilo que a “máquina” faz, impressiona-me a velocidade a que o faz. Intimidam-me mais os semicondutores do que as linhas de código. Algumas árvores vivem milénios; alguns insectos, dias. Para uns e para outros, o tempo é diferente. O nosso tempo não é o tempo binário. Já a criatividade, essa (ainda) pertence ao humano. Muitos escritores — incluindo alguns que colecionam bestsellers — compensam alguma falta de talento com processos formulaicos, um domínio razoável da língua e uma rotina férrea. Um autor talentoso, por outro lado, pode fracassar se não tiver hábitos de trabalho produtivos. Que obras-primas criaríamos se conseguíssemos ficar fechados em casa, não é assim?

Esta “democratização”, e sublinho aqui as aspas, aconteceu no passado, por exemplo com a fotografia, tida como uma oportunidade para a “democratização” das artes plásticas. Sabemos o que aconteceu: nem a pintura morreu (goste-se ou não dos caminhos que trilhou depois), nem a fotografia se tornou “democrática”, no sentido em que não fez de cada fotógrafo um artista. Assistiu-se, sim, a uma massificação do uso da câmara fotográfica e uma separação de águas entre o que é um fotógrafo artístico (que cria obras de arte), o fotógrafo profissional (que produz fotografias criativas e tecnicamente correctas com fins comerciais) e o fotógrafo amador (que captura instantâneos, de forma mais ou menos automática, com fins lúdicos ou memorialistas). Não é a ausência de um processo físico — a “mão criadora” — que faz com que um prompt de IA não seja arte, mas a falta de método e intenção artísticos.

Diria que a escrita ou o desenho assistidos por IA tendem a seguir fórmulas repetitivas?
Agora que as redes sociais levantaram o véu sobre a triste realidade da expressão escrita — logo, de raciocínio — de tantos de nós, a IA permitirá a quem domina mal o idioma comunicar por escrito de uma forma socialmente aceitável. O preço a pagar será um domínio ainda menor da língua e a falta de criatividade na expressão, porque detectar ironia e outros mecanismos literários pressupõe uma capacidade de interpretação não literal de textos e a existência de abertura mental, para já não falar de preparação intelectual, para a sua possibilidade. O compositor Charles Ives enviava ao seu zeloso impressor de música, junto com as partituras, uma nota: “por favor não corrija. Todas as notas erradas estão certas”. Se se der um texto muito bem escrito a uma ferramenta de IA, ela tenderá a normalizá-lo, “corrigindo” os aspectos mais criativos que fazem com que se trate de um bom texto — logo, tornando-o banal. É provável que no futuro, à medida que os sistemas se tornam mais sofisticados, este comportamento se altere.

Estaremos preparados para as inovações tecnológicas ao virar da esquina?
Lembro-me — isto foi provavelmente no início dos anos 80 — de um tipógrafo no seu fato-macaco azul-escuro me mostrar, com orgulho, uma prova de um dos meus desenhos feita por fotocomposição: “Sr. Bandeira, um computador alguma vez seria capaz de fazer um trabalho como este?”

Nunca estaremos completamente preparados, mas hoje estamos decerto mais conscientes e, por isso, mais preparados do que nunca.

O estado de coisas parece mudar a cada seis meses. O que podemos fazer para acompanhar a evolução tecnológica?
As certezas tornaram-se dúvidas sem saída. De súbito, algo que tínhamos como adquirido muda: afinal, o sol não anda à volta da terra. Estes novos paradigmas exigem que nos adaptemos às disrupções que criam nos nossos modos de vida. Um pouco de cepticismo saudável pode ajudar. Não o puro espírito de negação que nos leva a rejeitar todas as mudanças como negativas, nem a crença niilista de que tudo é absurdo, logo nada vale a pena, mas o tipo de cepticismo (há quem lhe chame curiosidade) que nos leva a continuar a procurar as soluções mesmo depois de as termos encontrado.

A adaptação passa, então, pela procura contínua de conhecimento?
O tempo é um bom professor, mas apenas se lhe dermos a oportunidade de ensinar. As nossas terceira e quarta décadas de vida são cruciais. É nesses anos que estamos, em termos gerais, naquilo a que os gregos antigos chamavam akmé — o pico das nossas capacidades — e que cimentamos a parte mens sano do binómio de Juvenal. É também nessa fase que muitos dos que se crêem esclarecidos percebem a sua condição de ignorância e vivem a epifania que lhes mudará a vida para sempre.

Que mensagem gostaria de deixar aos leitores da Invade?
Paul McCartney contou como os Beatles eram capazes de atravessar uma cidade inteira só para ver, num qualquer bar obscuro, como um guitarrista fazia determinado acorde. Saber que uma árvore é um plátano, outra um freixo e outra ainda um salgueiro muda a forma como vemos o jardim da nossa rua — e o mundo. Num plátano (cantado em Ombra mai fu, de Händel), num freixo (a árvore sagrada da mitologia nórdica) ou num salgueiro (que impávido assistiu à morte de Ofélia) há muito mais do que árvores: há um universo inteiro. Hoje, quando temos virtualmente toda a informação na ponta dos dedos, cabe-nos saber usá-la para enriquecer a nossa visão do mundo. A alternativa é tornar este admirável mundo novo numa distopia em que nos reduzimos ao gesto de deslizar um dedo pelo ecrã, num perpétuo e estéril movimento.

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