O visitante casual que apenas tenha um vislumbre, à entrada da majestosa Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, dos mais de trinta mil volumes elegantemente dispostos nas prateleiras das estantes rococó — e conheça a fama de luxo e ostentação dos 43 anos de reinado de D. João V — será desculpado por pensar que se destinava a fazer vista e impressionar embaixadores; mas estará enganado. Virtualmente cada um dos volumes da biblioteca foi aberto, lido, estudado e voltado a arrumar, tanto pelos seus utilizadores — que, explica-nos Sérgio Gorjão, diretor do Palácio, eram “os membros da Casa Real, os príncipes em formação — sobretudo as infantas, em preparação para o casamento —, membros da corte, e também os alunos dos estudos de Mafra e a comunidade religiosa” —, como pelos técnicos e bibliotecários que hoje, num afã tão conhecedor quanto dedicado, se entregam ao seu estudo e conservação.
A bibliotecária Teresa Amaral mostra-nos, repetindo os gestos de um frequentador de antigamente, como alguns destes volumes estão gastos no topo da lombada de tanto haverem sido retirados para leitura ou consulta, sendo hoje sujeitos a cauteloso restauro. Abrindo um magnífico atlas setecentista, chama a nossa atenção para a qualidade e resistência do papel de outrora.
É ainda Sérgio Gorjão quem nos explica a organização da biblioteca: “Na área norte, a mais afastada da entrada, a religião, o sagrado. No centro, as gazetas, a filosofia, os dicionários, as obras de consulta frequente. Por fim, na área sul, as obras profanas”.
Alvo de natural interesse é o local, na área sul, onde se guardam os “livros proibidos”: “Os que estavam no Index Librorum Prohibitorum, os que abordavam questões de natureza política, a alquimia, o esoterismo”. A coleção da biblioteca conta com inúmeros tesouros: “A primeira tradução do Alcorão em latim, incunábulos, manuscritos, livros de horas do século XV”. O diretor do Palácio Nacional não poupa nas palavras para elogiar o lado cultural de um monarca tantas vezes julgado apenas pelos seus aspetos mais mundanos: “Um rei muito interessado e conhecedor, versado em lei canónica e outras matérias. É ele quem conduz a filha, Maria Bárbara, rainha de Espanha pelo casamento com Fernando VI, nas manobras diplomáticas entre Portugal e Espanha. D. João V pode ser visto como um fabricante de paz”.
Com tudo o que a distingue enquanto património cultural e edificado, a Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra partilha com as bibliotecas públicas dos nossos dias a sua vocação de guardiã da memória e do conhecimento.